Retrato do sedutor melancólico

A exposição deixa perpassar o agudizar de um drama quase operático que marcou toda a vida de José Escada – retrospectiva no Museu Gulbenkian.

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É a primeira exposição a inaugurar neste lugar desde que o CAM deixou de existir e passou a integrar a totalidade do Museu Gulbenkian. Decorre agora no espaço que albergará de futuro a “colecção moderna”, assim intitulada porque exporá parte do riquíssimo núcleo dos modernismos portugueses pertencente a esta instituição. Depois de anos de intervalo, a Gulbenkian assume de novo a sua missão educadora. E ainda bem que assim é, já que nas colecções estatais sedeadas em Lisboa não existe nem existirá tão cedo nada que se lhe compare.

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O pintor que agora se celebra morreu relativamente cedo, o que decerto contribuiu para alimentar o mito, que sempre o acompanhou e ainda se associa ao seu nome, do artista maldito e pobre, vítima da sociedade onde vivia. O nome escolhido pela curadora, Rita Fabiana, para a retrospectiva de José Escada, Eu não evoluo, viajo, é não apenas uma apropriação de uma afirmação de Pessoa como o programa da própria estrutura da exposição. “Não detectamos na obra de Escada uma transição firme entre abstracção e figuração, por isso não é correcto usar o termo de evolução para caracterizar as mudanças estilísticas que observamos no seu trabalho”, afirmou, na altura em que visitármos a exposição. Fernando Pessoa referia-se, como é evidente, aos heterónimos, e a como era errado estabelecer critérios de avanço e recuo de tipo progressista para tipificar a obra de cada um deles em relação aos demais. No caso do pintor português, há também avanços e recuos. Mas nunca Escada se fixa num estilo em detrimento dos outros, voltando sem cessar ora a este, ora àquele, até ao momento em que morre, em 1980, aos 46 anos.

Se todos os que se movem no meio da história da arte portuguesa já ouviram, pelo menos, falar de Escada, poucos conhecerão a sua obra. Na realidade, e isto devido às circunstâncias difíceis em que decorreu boa parte da sua vida, essa obra esteve e está ainda hoje dispersa maioritariamente por coleccionadores particulares ou pelos seus herdeiros, que pontualmente colocam uma ou outra peça em leilão. E contudo, durante os anos em que foi um artista activo – entre 1955 e a data da sua morte, exactamente o período temporal que é abarcado pela exposição – era uma figura conhecida e estimada por todos, um sedutor, como Rita Fabiana o caracteriza.

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Andou nas Belas-Artes de Lisboa, passo fundamental para construir uma família de pares, entre amigos e relações, que lhe dariam a necessária réplica de trabalho até ao fim da vida. Foi professor de cerâmica decorativa e de desenho. Ainda em Portugal, foi sócio do Movimento de Renovação da Arte Religiosa, e um sócio activo, com ampla produção ensaística neste campo que lhe garante, como era habitual, as atenções da polícia política. Foi para Paris; teve bolsa da Gulbenkian, fez parte do KWY, e em 1971, com o fim da ajuda da fundação, entrou num período de enormes dificuldades financeiras que o acompanhariam até ao fim da vida. Por causa do seu envolvimento político, não tinha passaporte e só pôde regressar a Portugal em 1978. Deste contexto até à queda nas drogas e no álcool é um passo que Escada deu cedo demais.

Embora longe de ser autobiográfica, a exposição deixa perpassar este agudizar de um drama quase operático que marcou toda a vida de José Escada. Fabiana dividiu o acervo de trabalhos que conseguiu reunir em cinco núcleos, que são simultaneamente cronológicos e temáticos. Joie de vivre, o primeiro, tutelado por um Matisse que é simultaneamente o pintor da alegria de viver e o grande mestre do papel recortado e colado, inclui por exemplo um retrato de Lourdes Castro, colega de Escada nas belas-artes e sua futura amiga em Paris. Neste desenho, o pintor acentuou o contorno de toda a figura feminina, como se a destacar um traço que pudesse ser recortado. No núcleo seguinte, o das Iluminações, mostram-se as famosas figurinhas, os “ossinhos” como alguém lhes chamou que recordam as imagens simétricas dos testes de Rorschach. A curadora destaca  a figura muito estilizada de um sísifo encontrada num destes desenhos, associando-a com imagens religiosas que atravessam toda a produção do autor, e salientando que, tal como a figura mitológica grega, para Escada, Cristo é sempre um homem em sofrimento.

Em metamorfoses, as imagens surgem nesta fase recortadas e coladas, à imagem dos livros pop-up ou de algum nouveau réalisme francês, e muitas vezes, em vez de papel, Escada usa plástico ou metal. É por esta altura, e sobretudo a partir de 1971, que começa a ser apoiado economicamente pela família e por amigos, já que pouco vende que não seja a quem conhece. Na exposição, que inclui muito material gráfico, e sobretudo no catálogo, que contextualiza bem todas as obras que aqui vemos, percebemos que os melhores do seu tempo apreciaram e foram amigos de Escada. Sophia, Alçada Baptista, Lagoa Henriques, Salette Tavares e tantos outros souberam reconhecer nele o talento, mas também a capacidade de sedução tingida de melancolia.

Esta melancolia manifesta-se nas últimas obras, em que Escada, já a viver em casa da mãe, no Alto de Santo Amaro, se interessa pela natureza morta e pela paisagem que avista das janelas do seu quarto. “Da minha janela”, o nome deste grupo de peças, sucede a “as nossas amarras”, um conjunto de trabalhos em que as referências à homosexualidade, sempre encarada sob o signo do trágico, se revê em formas enoveladas, densamente emaranhadas, a recordar alguns dos seus melhores desenhos dos primeiros anos.

A riqueza dos aspectos conceptuais que a obra de Escada engloba fica manifesta nesta exposição. Das possibilidades gestuais da linha, da superação da bidimensionalidade do suporte, do assumir do movimento do espectador, das questões relativas à arte pública, da exploração da transparência e da opacidade a até, por exemplo, a síntese entre figuração e abstracção, ele toma como suas muitas das grandes interrogações que o seu tempo coloca à arte. Excessivo, levou tudo até ao limite, inclusive político, inclusive do nível de experiência que é possível suportar. Talvez esteja também aqui para além da qualidade do trabalho que nos deixou, a razão da persistência da sua memória.

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