“Thuram agradeceu aos portugueses e comeu sardinhas connosco”

O futebol foi e é fundamental para a boa integração da comunidade portuguesa na sociedade francesa, garante o deputado Carlos Gonçalves. A viver em França há várias décadas, este político revela o dia em que foi abordado pela mãe de Griezmann.

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Pedro Cunha

A meia-final entre Portugal e França de 1984 continua a ser um trauma na memória do deputado Carlos Gonçalves, que viveu o momento de forma intensa. O presidente do Grupo de Amizade Portugal-França e antigo responsável pelos serviços culturais em vários consulados francesas garante ao PÚBLICO que os clubes de futebol fundados pelos emigrantes portugueses foram fundamentais para a inserção dos luso-descendentes e recorda como o jogador mais internacional da história da selecção francesa, Lilian Thuram, cresceu no Club Sportif et Culturel des Portugais de Fontainebleau.

O que recorda do jogo entre Portugal e França das meias-finais de 1984?
Acompanhei muito de perto o Euro 1984, pois estava a estudar em França na altura. Não estive no Estádio Velódrome, em Marselha, mas estive no Estádio de Nantes, no Portugal-Roménia, onde a selecção nacional ganhou, por 1-0, com um golo de Nené. Depois acompanhei aquele miserável dia [derrota de Portugal nos últimos instantes do prolongamento, por 3-2]. Foi muito complicado. Na altura não havia tantos portugueses nos estádios a assistir aos jogos, era mais difícil. A comunidade portuguesa era bem diferente. Hoje já conseguimos repartir os estádios em termos de público. Em 1984, ainda estamos a falar da primeira geração de portugueses. Muitas famílias ainda estavam na fase do reagrupamento familiar. Hoje em dia, há muitos mais portugueses e eles estão presentes em grande número nos estádios. Têm condições e um nível económico médio superior à média francesa.

Como reagiram os portugueses a essa campanha da selecção nacional?
Para os portugueses que viviam cá na altura, este foi o primeiro grande acontecimento desportivo, para além das vitórias de Joaquim Agostinho em etapas da Volta a França em bicicleta, que permitiam subir o seu ego. Agora, aquela derrota com a França em 1984, acima de tudo pela forma como ela foi consumada… A manhã do dia seguinte foi dramática para todos nós, em particular para mim. Só tive oportunidade de me vingar disso anos mais tarde, quando o Vata marcou o golo com a mão que deu a vitória [1-0] ao Benfica sobre o Marselha [numa partida disputada a 18 de Março de 1990, que valeu a passagem dos “encarnados” à final da Taça dos Campeões Europeu]. Na altura, até o próprio primeiro-ministro, Michel Rocard, recentemente falecido, fez considerações sobre a forma como foi obtido esse golo. Divertiu-me imenso e foi um momento de vingança total, seis anos depois da derrota com a França.

Qual a importância do futebol na integração dos portugueses na sociedade francesa?
Um dos principais factores que ajudou à inserção da nossa comunidade em França foi precisamente o desporto e o futebol. Os portugueses começaram muitas vezes a organizar movimentos associativos, mas o futebol permitiu um outro tipo de abertura. Uma associação de folclore era puramente portuguesa, mas os clubes de futebol, independentemente de alinharem nas terceiras ou quartas divisões distritais, jogavam a cada domingo e em cada competição contra outras equipas francesas. O futebol teve um papel fundamental. Os miúdos que jogavam em equipas jovens, como no Club Sportif et Culturel des Portugais de Fontainebleau ou nos Lusitanos de St Maur, entre muitos outros, nos finais dos anos de 1970, anos de 1980 e 1990, tiveram uma boa integração da comunidade.

Esses clubes também abriam as portas a jogadores de outras nacionalidades. O maior exemplo é Lilian Thuram, capitão da selecção, com o recorde de internacionalizações (142) e campeão do mundo pela França, em 1998…
Sim, esse é um grande exemplo. Ele começou a jogar em miúdo [8 anos] no Club Sportif et Culturel des Portugais de Fontainebleau. Na altura, o estádio era numa terrinha ao lado de Fontainebleau. Recordo que estava lá uma vez e, quando me preparava para ir embora, disseram-me para ficar, porque estava a chegar o Thuram. Não imaginava que era “o” grande Thuram. Quando ia a sair do portão do estádio, ele estava a chegar e eu fiquei também. Esteve lá a comer sardinhas connosco, na maior, e ofereceu a camisola de campeão do mundo ao clube. Foram os dirigentes portugueses deste clube que apostaram nele quando era criança, porque até para comer tinha dificuldades. Pertencia à comunidade muçulmana, como muitos outros miúdos, que jogaram em clubes portugueses.

Os clubes portugueses evoluíram nos últimos anos?
Sim, hoje os nosso clubes já são diferentes, porque são cada vez mais franco-portugueses. Muitos tinham mais expressão em determinadas cidades do que o próprio clube francês da região e acabaram por verificar-se fusões. Actualmente, a melhor equipa de origem portuguesa são os Lusitanos de St Maur. É um clube que foi fundado em 1966, praticamente apenas por operários portugueses da construção civil, que jogavam lá. A equipa foi crescendo progressivamente até chegar aos campeonatos profissionais, mas depois voltou a descer. Agora estão apenas a um escalão dos campeonatos profissionais e, neste momento, é a terceira ou quarta melhor equipa da região de Paris. Este clube é uma escola de vida e até têm como slogan a frase “Somos a História”. Actualmente tem exactamente 50 anos de existência. Insisto: o futebol tem tido um papel preponderante na ligação a Portugal, na identificação e, para aqueles que chegaram nos anos de 1970 para a inserção dos filhos. Não há dúvida nenhuma.

Foi contactado pela mãe de Griezman há uns anos…
Sim. A primeira vez que se ouviu falar que o Griezman podia ser de origem portuguesa, eu estava num torneio indoor de miúdos numa associação portuguesa de Mâcon [terra natal do internacional francês]. Veio ter comigo uma senhora, que pensava que eu era o cônsul português em Lyon. Era a mãe do jogador [Isabel, que é também portuguesa] e pediu-me uma informação. Disse-me que o filho jogava em Espanha [na altura na Real Sociedad] e que gostava de ser português: ‘É que eu sou portuguesa e o meu pai também, mas a gente nunca o registou como português e ele, eventualmente, poderia pensar em ter a nacionalidade portuguesa, por causa da carreira dele.’ Apresentei-a ao cônsul, que era na altura o António Barroso, e eles falaram sobre o assunto. Na altura, em Mâcon, já toda a gente sabia que ele era também português, mas só agora é que se tem falado disso na comunicação social, referindo-se que ele é um jogador de origem portuguesa. Aquela gente de Mâcon, na área do futebol, é extraordinária. Mas temos várias assim espalhadas por toda a França.

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