David Alaba: o “deus” de Guardiola que muitos austríacos ainda desprezam

Polivalente do Bayern Munique é um dos grandes talentos das últimas décadas no seu país, mas tem sido alvo de racismo na Áustria.

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Alaba é o jogador mais importante da selecção da Áustria TOBIAS SCHWARZ/AFP

Günther Platter é um conhecido político austríaco, governador do estado do Tirol. No final de Maio de 2012, durante uma visita a um treino da selecção na região, viu um jogador negro a quem se dirigiu prontamente em inglês: “How do you do?” A sugestão era óbvia. Platter pensou que o jovem que tinha à sua frente era um nativo estrangeiro. Sem perder o “fair play”, David Alaba respondeu: “Eu estou bem, mas você pode falar em alemão comigo, porque sou austríaco.” O militante do Partido Popular não sabia, mas estava perante o maior prodígio do futebol nacional das últimas décadas. Um jogador a quem o treinador Pep Guardiola chamou um dia “deus”.

Filho de pai nigeriano e mãe filipina, Alaba nasceu na capital austríaca, Viena, há 23 anos, mas o seu enorme potencial futebolístico levou-o a deixar o país, em 2008, com apenas 16 anos. Cobiçado por vários colossos europeus, acabou por ceder ao assédio do Bayern Munique, que lhe permitia ficar a apenas três horas de carro da sua casa, em Viena. Começou a florescer na famosa academia do clube bávaro, até se tornar o talento de classe mundial que é hoje.

Com possibilidade de poder representar a Alemanha, Nigéria e Filipinas, o atleta não hesitou em optar pela camisola do seu país, tornando-se no mais jovem internacional de sempre do Wunderteam, frente à França, no Stade de France, em Paris, na qualificação para o Mundial de 2010 (derrota por 3-1), a 14 de Outubro de 2009. Tinha 17 anos e 112 dias. Mas nem todos parecem agradecidos com a dádiva.

A Áustria teve uma entrada em falso no Europeu de França. Considerada, a par de Portugal, como uma das favoritas a ocupar um dos dois primeiros lugares do Grupo F, a surpreendente derrota, no jogo de estreia, com a eterna rival Hungria, por 2-0, provocou algumas indigestões. Pouco depois do desaire, a página do Facebook do líder do Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ), Heinz-Christian Strache (que perdeu recentemente as eleições presidenciais, por apenas 31 mil votos) foi inundado com comentários xenófobos relacionados com a selecção.

Logo após Strache ter publicado um post apelando aos austríacos para manterem o ânimo e culpando, parcialmente, o árbitro pelo desaire, muitos dos seus seguidores discordaram da análise. Com um discurso de ódio, culparam os jogadores filhos de imigrantes pela derrota. Um dos comentários descrevia a selecção como “uma equipa nacional incrível, com dois sacos de carvão”, provavelmente referindo-se a Alaba e a Rubin Okotie, nascido no Paquistão e que tem também origens nigerianas.

O mais incongruente é que Alaba foi o melhor elemento da Áustria em campo. Ainda antes de cumprido o primeiro minuto enviou uma bola ao poste e esteve muito activo ao longo de todo o encontro. Demonstrou o mesmo empenho que exibe no Bayern Munique, mas a maioria dos seus companheiros não esteve à altura. Factos que não abalaram as convicções dos militantes da extrema-direita austríaca.

E esta não é a primeira vez que o polivalente jogador é alvo de racismo no seu país natal. Em Novembro de 2012, a própria ORF, a estação televisiva austríaca de serviço público, foi obrigada a pedir desculpas ao futebolista, após uma queixa de Alaba a acusar o canal de o ter racialmente insultado durante um programa de comédia. Um dos apresentadores brancos do show “Welcome Austria” foi pintado de preto para representar o jogador, enquanto outro se fazia passar pelo bilionário austro-canadiano Frank Stronach. Este “imitador” dirigia-se à personagem de Alaba como “homem negro”, dizendo: “Você provavelmente vive num campo de refugiados.” Em seguida, ergueu uma banana e perguntou: “O que é isto? Você provavelmente sabe, porque está sempre a vê-las. É uma banana.”

Já do outro lado da fronteira, Alaba é idolatrado pelos adeptos do Bayern Munique e pelos seus treinadores. Nas últimas três temporadas, Pepe Guardiola não se cansou de o elogiar, augurando que estava perante um dos melhores jogadores de sempre da história do clube. “Ele é simplesmente incrível. É apenas… uau… Ele pode jogar absolutamente em toda a parte”, espantou-se o técnico espanhol. É precisamente esta extraordinária polivalência e quase omnipresença em campo, que levou o catalão a apelidá-lo de “deus” e Ottmar Hitzfeld, antigo treinador dos bávaros, de “dádiva dos céus”.

Um rei da versatilidade

Depois de ter começado a jogar como médio, acabou por ser convertido por Van Gaal (que orientou o Bayern entre 2009 e 2011) num dos melhores defesas esquerdos do mundo. Mas, com Guardiola, atingiu uma outra dimensão de versatilidade. O novo treinador do Manchester City utilizou-o como médio centro, extremo, lateral esquerdo ortodoxo e, numa das suas principais inovações tácticas, como avançado e médio esquerdo interior, para além de defesa central. E em algumas ocasiões desempenhou grande parte destas funções na mesma partida. A parceria acabou por ser profícua para ambos. “Nem eu sabia que podia jogar como defesa central”, disse Alaba, após a primeira experiência (bem sucedida) nessa posição: “Fui melhorando a cada ano que Pepe esteve aqui.”

Mas, no meio de tantas posições no relvado, qual é aquela que David Alaba realmente prefere? “É no meio campo que me sinto melhor [e onde joga ao serviço da Áustria] e onde sinto que posso ser mais útil, porque toco muito na bola”, respondeu o jogador, numa recente entrevista à revista France Football, uma das raras que concedeu.

Com capacidades atléticas prodigiosas, tem extrema fineza no passe, precisão no corte e é letal nos lances de bola parada, particularmente nos livres. Poucos jogadores serão tão versáteis e menos ainda aqueles que conseguem desempenhar funções tão diferentes, mantendo a mesma qualidade.

Quando o Bayern Munique assinou contrato com Alaba, apostava que tinha encontrado um dos maiores jovens talentos europeus, que querem manter a todo o custo. Os bávaros recusaram recentemente uma proposta de 50 milhões de euros do Real Madrid pelo "diamante" austríaco e, perante o assédio dos milionários tubarões europeus, acabou por convencer Alaba a renovar o contrato até 2021, já em Março deste ano. A montra do Euro poderia levar a loucuras por parte da concorrência externa.

Na pequena e sossegada comuna de Mallemort, a pouco mais de 60km a norte de Marselha, David Alaba e os restantes elementos da comitiva austríaca prepararam nos últimos dias a partida com Portugal. O jogador do Bayern não esteve disponível para falar esta quinta-feira, mas deixou uma mensagem na sua conta de Twitter, um dia depois da derrota com a Hungria: “Não foi o início que queríamos, mas vamos regressar no sábado!”

Pela Áustria, Alaba apontou 11 golos em 44 internacionalizações, quatro dos quais na qualificação para o torneio francês. Desde os dias de Toni Polster, o recordista de golos desta selecção da Europa central, nos anos de 1980 e 1990, que o país não dispunha de um talento com esta dimensão.

“Estou a viver o meu sonho. Acordo todas as manhãs a pensar que é fantástico e não pode ficar melhor do que isto!” Alaba falava do currículo que já acumulou: cinco Bundesligas; quatro Taças da Alemanha; duas Supertaças; uma Liga dos Campeões e um Mundial de Clubes. Frente a Portugal terá mais uma oportunidade de mostrar a sua qualidade. Uma coisa é certa: não poderá deixar de ser notado, porque parece estar em todos os lugares em todos os momentos e a sua imprevisibilidade costuma superar tudo o que o adversário tenha planeado.

Um príncipe como pai

Fora dos relvados, Alaba é um fã de música, em especial hip-hop, sendo presença habitual em concertos ao lado do seu colega de equipa e amigo Jérôme Boateng. O seu pai, George Alaba, um popular DJ e rapper de Viena e também príncipe de Ogere, uma antiga cidade do Estado de Ogun, na Nigéria, foi o primeiro negro a ingressar no exército austríaco. Descreve o filho como “um homem de família”. Já a sua mãe, Gina Alaba, uma enfermeira, vencedora de concursos de beleza nos anos de 1980, é idolatrada na sua terra natal, por ter gerado o maior jogador de futebol de sempre com sangue filipino.

No Bayern, para além de Boateng, tem uma forte relação com o francês Franck Ribéry, que o apadrinhou quando chegou ao clube com 16 anos. “Ele deu-me o conselho que mais me marcou. Disse que tinha primeiro de provar o meu valor em campo, antes de querer belos carros e roupas de luxo. Disse-me que, de modo algum, deveria queimar etapas e eu estou-lhe muito grato.”

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