Ministério Público e PSP omitiram violência e racismo na polícia

IGAI, que tem poder disciplinar sobre os agentes, salienta que corporação e o MP não fizeram aquilo a que estavam "obrigados". Organismo soube, quatro anos depois, pelo PÚBLICO, do caso de agente que baleou cigano.

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Em causa está o caso do polícia que foi condenado por balear um cigano movido por “ódio racial” Enric Vives-Rubio

O Ministério Público (MP) e a PSP omitiram à Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) o caso noticiado recentemente pelo PÚBLICO relativo a um agente da PSP de Beja condenado a uma pena suspensa de um ano e três meses de prisão por balear com uma espingarda um jovem cigano. O juiz deu como provado que tal se deveu a “ódio racial”. A IGAI, que tem competências disciplinares sobre agentes da PSP e da GNR, descobriu a situação só na sexta-feira, quando o PÚBLICO a questionou e avançou detalhes do caso ocorrido em 2012. Durante quatro anos, o organismo, ao qual a PSP e o MP estavam obrigados a comunicar o sucedido, de nada soube.

Os processos disciplinares podem resultar, entre outras sanções, na suspensão de serviço ou na expulsão. Mas agora, mesmo que a IGAI avoque o processo disciplinar ao agente que está em fase de conclusão nos serviços da inspecção da PSP, as provas estarão comprometidas devido ao passar do tempo, segundo fonte da inspecção.

Na sexta-feira, face a dados fornecidos pelo PÚBLICO, a IGAI, apanhada de surpresa, faz perguntas ao Tribunal de Beja e à PSP. “O MP e a PSP estão obrigados a comunicar estas situações à IGAI, mas não o fizeram”, lamentou então, numa resposta escrita enviada ao PÚBLICO, o subinspector-geral da Administração Interna, Paulo Ferreira. A IGAI decidiu “abrir um processo de natureza administrativa” para averiguar “os motivos que levaram à omissão das comunicações”.

PGR investiga

A falha, que tanto tempo demorou a ser revelada, será também investigada pela Procuradoria-Geral da República (PGR). “Tendo-se verificado que não houve oportuna comunicação à IGAI — a qual não é obrigatória por lei mas que se encontra prevista em normas internas —, a PGR vai averiguar por que motivo tal não sucedeu”, explicou a procuradoria.

Os procuradores que lideraram o inquérito-crime e mais tarde defenderam a condenação do polícia em tribunal estavam obrigados a comunicar todo caso à IGAI desde o seu início, em 2012. Uma circular interna da PGR, ainda assinada pelo ex-procurador-geral da República, Cunha Rodrigues, obriga os magistrados, desde Maio de 1998, a comunicar à IGAI a instauração de inquéritos-crime “em que seja arguido” um agente da PSP ou da GNR.

Também na PSP existem instruções iguais. Um despacho do ex-ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, obriga as polícias, desde 2013, “a dar imediata notícia dos factos” à tutela e à IGAI nos casos em que agentes sejam suspeitos de “violação de bens pessoais, designadamente de morte ou ofensas corporais graves ou da existência de indícios de grave abuso de autoridade ou lesão de elevados valores patrimoniais”. Neste caso, o polícia foi acusado e condenado por ofensa à integridade física qualificada.

Versões contrárias

Em Outubro de 2012, Igor foi a uma quinta em Beja, explorada por agentes da PSP nos tempos livres. Queria pedir trabalho. Bateu ao portão e perguntou ao agente da PSP, Manuel António Santos, de 56 anos, se podia falar com ele sobre a apanha da azeitona. A resposta surgiu de um cano de uma espingarda “pressão de ar”. O jovem, desarmado, foi atingido na cara, no lábio, perdeu dentes, caiu no chão. Ainda hoje não consegue comer nem dormir normalmente e necessita de uma cirurgia ao maxilar.

O Ministério da Administração Interna, que diz ainda não ter sido notificado da sentença recente, alega que, “à data dos factos, a notificação da IGAI só era obrigatória em relação a casos que envolvessem agentes em serviço e não na sua vida privada”. Dois despachos do MAI, de 2009, que nunca terão sido publicados em Diário da República, regulavam a relação entre a IGAI e a PSP e não obrigariam à comunicação de ilícitos cometidos por polícias na sua vida pessoal, garantem algumas fontes policiais, enquanto outras, judiciais, salientam o contrário.

Certo é que a IGAI disse ter iniciado esta segunda-feira “diligências” para saber “se a conduta do elemento policial ocorreu no decurso de uma acção policial ou se sucedeu no âmbito da actividade privada”. Segundo a sentença, o agente não estava de serviço. A PSP diz que está “totalmente disponível para prestar qualquer esclarecimento que a IGAI entenda pertinente”.

Outras estranhezas deste caso estão igualmente espelhadas na sentença que condenou o agente a pagar também uma indeminização de dez mil euros à vítima. Após o disparo, o agente fugiu enquanto os colegas da PSP chamados a tomarem conta da ocorrência nada terão feito para o localizar ou apreender a arma. Removeram do local o carro do colega e terão, assim, tentado encobri-lo, acredita o juiz. A investigação só arrancou com a chegada da Polícia Judiciária. A possibilidade de serem alvo de um inquérito disciplinar já prescreveu, mas podem ainda, lembrou fonte judicial, ser acusados pelo crime de favorecimento pessoal na sequência do que foi dado como provado no julgamento de Manuel António Santos.

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