Polícia movido por “ódio racial” condenado por balear cigano

Jovem atingido na cara necessita de cirurgia e não consegue comer normalmente. O tribunal não teve dúvidas: foi alvejado por ser cigano.

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O polícia foi condenado a um ano e três meses de prisão e a pagar dez mil euros à vítima Miguel Madeira (arquivo)

Igor queria pedir trabalho e não estava à espera de ser recebido a tiro. Muito menos por um agente da PSP. Era final de tarde, em Beja, e deslocou-se à Quinta d’El Rei. Bateu no portão e só teve tempo de fazer uma pergunta: “Posso falar consigo?” Manuel António Santos, que trajava à civil, apareceu, ergueu uma mão aberta no ar e, gesticulando, pediu a Igor que aguardasse. Minutos depois, o agente da PSP surgiu com uma espingarda e disparou sobre ele. O jovem de 30 anos, desarmado, foi atingido na cara, no lábio, perdeu dentes, caiu no chão.

A vítima apenas pretendia falar com o agente, de 56 anos, sobre a apanha da azeitona das oliveiras que ainda hoje se erguem naquela quinta explorada por Manuel e outros agentes da PSP de Beja. Foi alvejado por ser cigano.

“Tenho um ódio aos ciganos, e à vossa raça, que se pudesse matava-os a todos”, disse o agente depois de baixar a arma, uma “pressão de ar”, segundo a sentença do Tribunal de Beja que recentemente o condenou a uma pena suspensa de um ano e três meses de prisão por ofensa à integridade física qualificada.

Terá também de pagar uma indemnização de dez mil euros a Igor G., que tinha exigido 30 mil. O advogado do agente, Manuel Ferreira, pondera recorrer e não quis comentar. A PSP, que não comentou esta decisão judicial, confirmou que está em “fase de conclusão” o  processo disciplinar aberto ao agente, que garantiu ao PÚBLICO que “se há coisa que não é” é “racista”. “Até tenho muitos amigos de cor…”, justificou.

Mas o Tribunal de Beja não teve dúvidas de que, em Outubro de 2012, o agente da PSP foi “movido por sentimentos de ódio racial a indivíduos de etnia cigana”. De acordo com a sentença a que o PÚBLICO teve acesso, nada mais explica a atitude do polícia. Igor foi mirado pela espingarda de um agente “que não reconhece a vítima como uma pessoa digna dos direitos de um interlocutor numa sociedade democrática e pluralista”. O polícia, diz o juiz, usou a espingarda “contra alguém” com quem “não tinha tido qualquer confronto físico e que se apresentava desarmado”.

Depois do disparo, o agente fugiu do local, segundo o tribunal, que critica a actuação dos colegas da PSP chamados a tomarem conta da ocorrência e que quase nada fizeram para localizar o suspeito. Em vez disso, removeram do local o automóvel de Manuel dos Santos para que, alegaram, não fosse alvo de represálias “por um grupo de etnia cigana” que nunca chegou a existir. Para o juiz, os agentes terão assim tentando encobrir o colega enquanto este abandonava tranquilamente o local a pé. Não fosse o suspeito agente da PSP e a vítima um cigano e a actuação policial teria sido “muito mais enérgica e produtiva”, diz o juiz. A investigação só arrancou com a chegada da Polícia Judiciária.

Em tribunal, Manuel dos Santos alegou que à hora do tiro estava noutra localidade com um colega a vender produtos num restaurante. Mas uma advogada testemunhou tê-lo visto a abandonar o local do crime a pé. Quatro amigos do agente entraram no tribunal como testemunhas e saíram arguidos. O juiz considerou que orquestraram uma versão falsa para beneficiarem o agente condenado.

Mais de três anos após ter sido alvejado, Igor ainda sente dores. O juiz sublinha que o jovem chega a tomar uma caixa de “Ben-u-ron” por dia. Atingido na face, no lábio e na gengiva, ainda agora “a raiz dos dentes fracturados não cicatrizou e periodicamente” tem dores “e uma infecção que irradia para o ouvido”, lê-se na decisão. Igor não consegue comer nem dormir frequentemente por causa das mazelas com que ficou e continua com frequentes dores de cabeça e de ouvidos.

A vítima, alega a sentença, passou desde então a sofrer de hipoacusia mista bilateral. Ficou praticamente surdo de ambos os ouvidos, mas o tribunal não deu como provado que tal tenha sido consequência do disparo. Facto é que necessita, sublinha o magistrado, de uma intervenção cirúrgica ao maxilar que ainda não fez por não ter “meios económicos” e por o hospital da área não ter um médico estomatologista.

“Fez-se justiça até um certo ponto. Sei que este é apenas um agente entre muitos que têm um comportamento exemplar na PSP, mas a sua atitude foi chocante. Que país é este em que se leva um tiro só por se ser cigano? A pena podia ter sido mais pesada e o Ministério Público devia tê-lo acusado de discriminação racial, crime previsto na lei”, defende a advogada da vítima, Dulce do Carmo Amaral.

"Casos destes são frequentes"

O presidente da União Romani Portuguesa, representante da comunidade cigana no país, concorda. “Esse caso é escandaloso. Só porque sou cigano não tenho culpa que outros ciganos roubem ou matem. A pena desse agente deveria ser mais pesada. Casos destes são frequentes”, diz José Maria Fernandes, recordando um episódio em que diz ter sido agredido, há dois anos, no Bairro do Cerco, no Porto, por agentes da PSP, quando “tentava acalmar os polícias à cacetada a ciganos que iam apanhando no bairro à procura de um que roubou um fio de ouro”.

Já o presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia, Paulo Rodrigues, sublinhou não conhecer o caso. “O comportamento deste agente é reconhecido como exemplar por todos os colegas. Tanto que foi eleito delegado do nosso sindicato em Beja. Às vezes, coisas destas acontecem por causa de desentendimentos anteriores em serviço, mas não sei se foi isso que aconteceu”, disse.

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