Pasolini na noite dos teddy boys

Nos anos de transição do paradigma do neo-realismo para o da nouvelle vague, quando tantos escritores e intelectuais se converteram em argumentistas e em realizadores, Pasolini ensaiou também a sua aproximação ao cinema.

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A acção de A Nebulosa decorre numa noite de passagem de ano, em Milão: um bando de teddy boys percorre a cidade, cometendo patifarias

A história da génese de A Nebulosa conta-se depressa e é conveniente contá-la. No final da década de 1950, Pier Paolo Pasolini (1922-1975) firmara a sua reputação de escritor e intelectual explosivamente comunista e católico, e enjeitado por ambas as ortodoxias (devido, em grande parte, a uma ostensiva homossexualidade). Havia publicado, nomeadamente, La Meglio Gioventù (poemas), os romances Vadios e Uma Vida Violenta (editados em Portugal na década seguinte) e as estivais reportagens mais tarde reunidas no volume La Lunga Strada di Sabbia. Nesses anos de transição do paradigma do neo-realismo para o da nouvelle vague, quando tantos escritores e intelectuais se converteram em argumentistas e em realizadores, Pasolini ensaiou também a sua aproximação ao cinema. Escreveu ou colaborou na escrita dos argumentos de vários filmes: As Noites de Cabíria, de Federico Fellini, La Notte Brava, de Mauro Bolognini, Morte di un Amico, de Franco Rossi. Nesse magnífico ano de 1959, um produtor adventício milanês encomendou-lhe um argumento em torno de um tema que não era estranho a Pasolini e que, no contexto da rápida emergência das sociedades “afluentes” ocidentais do pós-guerra, ganhara já as atenções políticas, sociológicas e mediáticas: a delinquência juvenil, mais ou menos gratuita e alienada, dos rebeldes sem causa dos subúrbios das cidades em acelerada e alegre expansão (estou a lembrar-me, a propósito, de um livrinho de Italo Calvino publicado nesses anos e intitulado, justamente, A Especulação Imobiliária...). São os teddy boys dos insaciáveis anos iniciais do miracolo económico italiano. Em Milão, lembra Alberto Piccinini no excelente texto introdutório deste volume, corria um lugar-comum: “Se caíres, ninguém te ajuda a levantar”. O argumento escrito por Pasolini será depois desaproveitado por Gian Rocco e Pino Serpi, realizadores de um filme que intitularam Milano Nera (um fracasso estreado em 1963), e manteve-se surpreendentemente inédito, na sua integralidade, até 1995, quando o original foi exumado dos arquivos da revista Filmcritica, com a qual o autor colaborara. É esse original, A Nebulosa, que agora, quarenta anos após o assassinato do realizador, podemos ler em bom português.

A publicação de textos teatrais, inclusive a de obras clássicas e canónicas, rareia, em Portugal talvez mais do que em outras partes. Alegadamente, por tais textos não encontrarem leitores em número que justifique a sua publicação. Mas talvez não seja alheia a tal escassez de leitores a consideração difusa de que faltaria frequentemente ao texto teatral – mera etapa na construção do objecto performativo final, o espectáculo – autonomia estética. Não admira que seja muito mais rara, aqui e em toda a parte, a edição de argumentos de filmes fora de colecções restritas e específicas. O carácter liminarmente instrumental do argumento na feitura de um filme raramente é disputado ou questionado (a analogia é tentadora, mas a discussão do estatuto da música especificamente escrita para um filme seria ainda mais especiosa). Poderíamos dizer, enfim, que, no caso de Pasolini, partimos do lado contrário, e este argumento, A Nebulosa, é-nos proposto, precisamente, como obra literária autónoma. Justifica-se? Inteiramente.

Pasolini estreou-se na realização em 1961, com o filme Accattone, que é a continuação da sua obra literária por outros meios. A tensão entre a literatura e o cinema foi nele, aliás, constante, nessa furiosa e profícua década e meia que lhe restava viver. Não me refiro necessariamente, nem principalmente, às canónicas fontes literárias que convocou para a obra fílmica (Medeia, Édipo Rei, Decameron, Os Contos da Cantuária, etc.), mas recordo que era hábito Pasolini fazer publicar em livro os seus argumentos, transformando-os eventualmente em “romances” (é o caso de Teorema, por exemplo). Estranhamente, talvez, Pasolini lembra-me escritores/realizadores tão diversos como Alexander Kluge (pela combatividade crítica, teórica e política) e Alain Robbe-Grillet (com os seus cine-romances). Tudo isso é vislumbrável, ou adivinhável, no volume agora publicado pela Antígona.

A acção de A Nebulosa decorre numa noite de passagem de ano, em Milão. Um bando de teddy boys, devidamente fardados (“como se nota pela gola levantada do blusão de couro preto”) e motorizados, percorre as ruas da cidade, cometendo patifarias e tentando divertir-se, como manda o calendário: assaltam uma igreja, sequestram e ameaçam mulheres e casais, roubam carros, perseguem e molestam um homossexual, armam zaragatas, embebedam-se, cantam e dançam, etc. Fazem trinta por uma linha, para utilizar uma locução que me parece ir bem com teddy boys. No final há uma morte trágica. Como contraponto da violência apolítica e conformista dos teddy boys, Pasolini mostra-nos, de passagem, o porteiro de uma discoteca (ou, melhor, de um night club), “cheio da sua patética sensatez de homem honesto”.

O argumento, dividido em planos e cenas, dispensa outras anotações técnicas, que quase se resumem a um ou outro “fade out” e à indicação de que as imagens (“rápidas, fulminantes”) da cidade devem ser enquadradas “do interior do carro que circula veloz”. O travelling – reiteradamente sugerido pela “sucessão de imagens tristes de casas, avenidas, sem esperança” que “desfilam na janela [do carro], sem fim” – é, decididamente, e implicitamente, o movimento de câmara preferido deste filme em palavras. Em contrapartida, e embora a maior parte do texto seja constituída por diálogos, são substanciais, e substantivamente literárias, e até, por vezes, secamente poéticas, as indicações cénicas. As didascálias, digamos assim. Veja-se, por exemplo, como é descrita a casa onde mora um dos rapazes: “Escadas tristes de um prédio velho, com a sua antiga dignidade  ‘art nouveau’ decadente, corroída por gerações de famílias pequeno-burguesas em luta com o salário. […] Entranhado na atmosfera, há um cheiro que faz pensar em refogados e lavatórios, e, ao mesmo tempo, uma necessidade desesperada de dignidade burguesa” (pp. 161-2). Como traduzir este cheiro em imagens e sons?

O momento crítico da história ocorre quando o homossexual importunado “enfrenta os rapazes com a única verdadeira arma que possui: a palavra”. E contra-ataca: “Vocês não são infelizes, são infelicíssimos. Odeiam os vossos pais e o mundo deles, ou seja, a sociedade; mas não os odeiam suficientemente… porque, no fundo, são iguais a eles…” (pp. 149-50). Mas a catarse não se dá, e é sem dúvida por isso que a tragédia final se torna necessária. 

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