Pedra, tempo e memória num monte agrícola de cinco estrelas

No passado, o Barrocal era uma pequena aldeia onde viviam as 50 famílias que trabalhavam na propriedade. Ocupada depois da revolução, devolvida mais tarde à família proprietária, é agora um resort de cinco estrelas, com spa, restaurante, adega, um vinho próprio. Mas a transformação respeitou de tal maneira o lugar que nos sentimos parte desta história.

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Esta é uma história de pedras, de tempo, de persistência e de memória. É uma história de respeito por um lugar.

Talvez possamos começar a contá-la por um pequeno episódio ocorrido no início de Agosto de 1927. De reportagem pelo Alentejo, o enviado especial do Diário de Notícias encontra na estrada o “Sr. Dr. Jaime Constantino Fernandes Leal, característico tipo de lavrador alentejano”, que lhe faz um convite. “Se nunca viu um monte alentejano, vai ter ensejo de o conhecer de perto. Fica perto de Monsaraz. À volta passe por lá. Esperá-lo-ei.”

O jornalista aceitou o convite e foi assim que descobriu, e pôde descrever aos seus leitores, a típica casa de lavoura alentejana, onde viviam cerca de 50 famílias. Para além da casa do proprietário, havia a do feitor e a “rua do Monte”, com as residências para os outros empregados, as oficinas, os celeiros, as cocheiras, e depois a padaria onde provou “um delicioso pão acabado de sair do forno”, a “casa do queijo com as suas arcas carregadas de sal, as despensas onde se guarda a carne da matança do gado suíno”, as alfaias agrícolas, as talhas do azeite, “os depósitos de farinha, o forno de cozedura, e as arrecadações onde a fruta se conserva”, as várias oficinas, “os celeiros abarrotados da colheita” e muitas outras coisas.

Passaram-se muitos anos e hoje somos nós que percorremos a longa “rua” central deste monte alentejano que agora se chama São Lourenço do Barrocal. Não viemos a convite de um “característico tipo de lavrador alentejano”, mas sim de um empreendedor alentejano, José António Uva, que pegou nesta propriedade de família e a transformou no resort de cinco estrelas junto a Monsaraz, inaugurado há dois meses.

E, no entanto, à nossa volta faltam apenas os trabalhadores agrícolas e os celeiros cheios para pensarmos que estamos de regresso a 1927. Essa foi precisamente a preocupação de José António Uva — que este sítio continuasse a contar a sua história e que, mesmo sendo um hotel, parecesse mais um monte onde algumas actividades agrícolas continuam, mas agora ao serviço de um projecto turístico de grande qualidade. É por isso que, quando entramos no Barrocal, as indicações que apontam para a recepção podem passar despercebidas e num primeiro momento, podemos mesmo duvidar que estejamos no sítio certo.

Mas estamos. O mapa que nos entregam na recepção — uma belíssima ilustração de Henriette Arcelin — mostra-nos um monte agrícola, com silos, campos, oliveiras e até umas vaquinhas a pastar. Só uns discretos números indicam o que existe na realidade: os 24 quartos (dois deles são suítes), as 15 casas, o spa da marca Susanne Kaufmann, o restaurante, a loja, a sala dos brinquedos, a horta e a piscina, a adega, a sala de provas e garrafeira — porque uma das coisas em que São Lourenço do Barrocal voltou a apostar foi no vinho, agora com marca própria.

José António Uva convida-nos a outra viagem no tempo. Desta vez recuamos apenas alguns anos, até 16 de Janeiro de 2002, “o ano em que se fechou o paredão da barragem do Alqueva”. Ele próprio, acabado de regressar do estrangeiro, onde viveu e trabalhou durante alguns anos, está instalado na antiga casa do hortelão, junto à horta e ao local onde hoje está a piscina, olha para o Barrocal à sua volta e abre o computador. É tempo de começar a desenhar um projecto para a propriedade que pertence à sua família há tantas décadas e que já viveu tanta coisa.

“No século XIX, um antepassado nosso chamado Manuel Mendes Papança comprou à Casa de Bragança cerca de 9000 hectares de terras de mato”, conta. “Até essa altura não tinha havido grande desenvolvimento agrícola no Alentejo, esta zona seria sobretudo uma defesa de fronteira.” Foi preciso desbravar o mato e preparar os solos para a agricultura. Com o 25 de Abril, a propriedade foi ocupada e a partir de 1975 o Barrocal viveu outra vida (acabou por ser devolvido à família na década de 1990).

José António Uva consegue reconstituir quase tudo graças às muitas caixas que foram guardadas com todos os documentos e fotografias de muitas décadas — hoje quem visita o hotel encontra essa história nas paredes, na zona do bar, nos quartos (registos de compras ou de pagamentos escritos em lindas caligrafias antigas receberam por cima desenhos de fauna ou flora local e decoram as paredes dos quartos) e sobretudo no restaurante, decorado com fotos antigas a preto e branco e muitos objectos da família, entre chapéus, alfinetes e colecções de borboletas (toda a decoração é da responsabilidade da empresa Anahory-Almeida).

Quanto ao período da ocupação, é possível conhecê-lo melhor graças ao estudo antropológico feito por José Cutileiro nos anos 1970 e que deu origem ao trabalho Ricos e Pobres no Alentejo. “Cutileiro retrata muito bem essas duas épocas, no final da ditadura, quando o que aqui existia já não era um modelo agrícola com viabilidade económica, já era uma coisa parada no tempo, e no final dos anos 1970, com a reforma agrária, numa altura em que, na descrição dele, não havia rei nem roque. No livro, aquilo que ele identifica como a ‘herdade n.º1’ é o Barrocal e o ‘latifundiário x” é o meu bisavô.’

Uma terra de menires

Mas a José António Uva não interessava apenas esta história, queria recuar mais no tempo. Por isso, juntaram pessoas que dariam informação que eles, “apesar da relação especial com este espaço”, não tinham: “arqueólogos, geólogos, biólogos, arquitectos, paisagistas, agrónomos, historiadores”.

Um dos que ajudaram a compreender o local e a desenvolver um conceito foi o arquitecto paisagista João Gomes da Silva. Porque, para lá da história, foi preciso olhar a paisagem. “Os primeiros nómadas que aqui habitaram foram, tudo indica, os povos neolíticos”, conta José António Uva. “E escolheram esta zona de granito, e não a zona de xistos do Guadiana, porque o granito dava-lhes melhores condições para montarem em cada um destes barrocais [afloramentos de pedras], uma casa.” Daí que existam hoje no Barrocal menires. “Um deles é dos mais altos desta zona, com 5, 70 metros, estivemos seis meses a escavá-lo e acabámos por perceber que não estava na sua posição original e conseguimos pô-lo de volta.”

José António vai-nos contando a história enquanto passeamos pelos caminhos do Barrocal. Chegámos na véspera e fomos recebidos com um almoço informal de petiscos feitos pelo chef consultor, o alentejano José Júlio Vintém, do restaurante Tomba Lobos. Aqui (e no restaurante onde jantaremos depois) a comida é genuinamente alentejana, mas com a qualidade que o nome de Vintém garante. Abrimos o vinho de São Lourenço do Barrocal e comemos o delicioso pão de azeitonas, favas com enchidos, cabeça de xara crocante, ovo do campo com túberas, perdiz de escabeche e várias outras delícias que vão chegando.

À tarde vamos conhecer o spa, que, com o seu longo corredor abobadado de 40 metros, parece quase um mosteiro (e, tal como a cozinha usa sobretudo ingredientes biológicos, também os produtos da marca austríaca Susanne Kaufmann são biológicos). Não foi fácil manter as belas abóbadas da construção original, mas, depois de todo o trabalho de definição do conceito, José António começou a trabalhar com o arquitecto Eduardo Souto Moura e ambos concordaram sobre o caminho a seguir.

“Se se redesenhasse os edifícios ficávamos com um bolo de noiva, muito perfeitinho, mas perdia-se o bonito que isto tem, todas as imperfeições, a patine que foi ganhando com os anos.” Houve, por isso, um enorme cuidado com os materiais, dos caixilhos de madeira às telhas cozidas em forno de lenha. Cuidado que se estendeu também à escolha de todas as peças, desde as mantas da Burel (Serra da Estrela) e de Mizette Nielsen (Alentejo), às peças de olaria das Caldas da Rainha, passando pela colaboração com a marca de roupa La Paz. 

Passaram-se 14 anos desde o dia em que José António, depois de uma noite bem dormida na casa do hortelão, abriu o computador para dar uma nova vida ao Barrocal. Houve momentos de entusiasmo, estudos, descobertas, e houve dias de dúvidas, de perguntar se o projecto faz sentido, se os bancos vão financiar, se o país vai voltar a mudar (em 14 anos, Portugal intercalou momentos de grande optimismo com outros de negro pessimismo), se se vão conseguir cumprir os prazos do QREN, se alguém vai querer passar férias aqui.

O vinho de ontem e de hoje

“E, ao fim de 14 anos, a coisa torna-se realidade”, conclui José António. A vinha foi plantada, a horta está a ser recuperada, a piscina está pronta (por ela irrompe uma bela rocha calcária que a torna, definitivamente, uma piscina do barrocal). “Na parte agrícola, o primeiro trabalho foi encontrar alguém que soubesse fazer vinho, porque eu não tinha a mínima ideia de como fazer”, confessa. Foi assim que chegou à enóloga Susana Esteban, responsável pelos vinhos São Lourenço do Barrocal.

A herdade já tinha uma história ligada à viticultura, embora um pouco perdida no tempo. José António guarda ainda algumas garrafas antigas que provam como os seus antepassados, no século XIX, já apostavam nos vinhos — na altura fortifi cados. “O senhor Papança oferecia terras a quem se comprometesse a plantar vinha e isso deu origem à maior cooperativa vitivinícola do país.”

Com Susana Esteban, decidiram manter as vinhas velhas e, ao mesmo tempo, plantar novas com castas como a Touriga Nacional, o Alicante Bouschet, o Aragonês, Syrah, Antão Vaz, Encruzado. “Assumimos que íamos fazer a vinha pelo método antigo, plantando o americano, que é uma cepa mais austera, que vai mais fundo à procura de água, e ao fi m de um ano faz-se a enxertia com a casta que queremos.”

Optaram também por não regar as vinhas. “No Alentejo quase todos os produtores regam porque há anos de seca e pode haver quedas na produção de 50% ou mais. Nós assumimos esse risco porque achamos que assim estamos a fazer um produto mais próximo da identidade do terroir. Queremos vinhos com elegância, fugindo do arquétipo do vinho pesadão do Alentejo.”

Começaram em 2011 e fizeram o primeiro Reserva dois anos depois, usando ainda uma adega em Estremoz. Agora, a adega desenhada por Souto Moura está pronta, cheira a novo, e será usada pela primeira vez na próxima vindima. “Este nível de proximidade entre a adega e a vinha vai-nos permitir dar um salto no nosso conhecimento da vinha, dos diferentes talhões.”

Passamos depois pela horta, murada, que está a ser recuperada. A ideia é que, no futuro, os legumes do restaurante passem a vir desta horta, que tem um sistema árabe de irrigação, com uma espécie de aqueduto, mas por enquanto vêm do vizinho Monte do Laranjal. E estão em exposição em cima de uma mesa quando chegamos para o jantar. Há uma couve-flor gigante, uma beterraba também enorme ao lado de um peixe bagre e de um lúcio-perca vindos do Alqueva.

Sentamo-nos para jantar: sopa de abóbora assada em forno de lenha, pezinhos de coentrada, peixe do Alqueva com migas, bochechas de porco preto com puré de aipo. E, para terminar, sericaia, toucinho-docéu, tarte de limão merengada. Vinho daqui e conversa pela noite dentro.

Quando saímos do restaurante, a lua ilumina a rua central, a fileira de casas a perder-se num ponto de fuga na mágica noite do Alentejo. Não há trabalhadores a carregar as alfaias, armazéns cheios de cereais e “ricos lavradores”. Mas o Barrocal está de novo vivo — é um espaço do século XXI que soube encontrar o seu lugar porque não se esqueceu da sua história.

A Fugas esteve alojada a convite do São Lourenço do Barrocal.

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