Controlo de passaportes

Não havia (e não há) papéis, controlos, cercas e cadeados que parassem o mal e que contivessem o medo.

O passado ensina que se farta. E a História tende a repetir-se, primeiro como tragédia e depois como farsa. Não é preciso ser marxista para o saber, nem sequer é preciso ter lido Marx. Basta saber um bocadinho, ter observado um pouco, estar atento e refletir. Tudo atividades que faziam bem a muita gente hoje em dia, mesmo que apenas em doses moderadas, apenas uma colher por dia – como o velhinho óleo de fígado de bacalhau, que não sabia bem mas parece que fortificava. Estudar e observar um bocadinho, parar um pouco para pensar, olhar para o passado e para o lado com olhos de ver – tudo coisas que se calhar cansam um pouco, se calhar não são tão apelativas quanto o ruído e as luzes dos sound bites e das redes sociais, tudo coisas que desconfortam a desconfiança fácil e ligeira que se instala no conforto, em especial dos que nunca saíram do seu sítio, dos que não se mexeram nem viram para lá do que lhes oferece a viagem em redor do seu quarto.

Tudo isto que me vem à cabeça – flashes rápidos mas incisivos – enquanto espero no controlo dos passaportes, algures num lugar onde não há livre circulação, e onde mesmo ao lado há guerra, ameaças e motivos de desconfiança. O momento em que espero é também o momento em que na Europa, lá longe, se discute Schengen e a própria Europa e em que, com a rapidez e a superficialidade das sentenças rápidas ditadas pelo medo, se decreta o fim da União como a conhecemos, como remédio para todas as ameaças, nomeadamente a das armas carregadas pelos terrorismos.

Espero, a fila é grande, há tempo para recordar. Recordo a primeira vez que saí de Portugal, iam os anos oitenta do século passado a pouco mais de meio, e era preciso esperar e carimbar, mesmo que fosse apenas para ir ali ao lado. E depois, para passar para o lado do ali ao lado, novamente esperar e carimbar, e assim sucessivamente. Quantas relíquias conseguia um espantado adolescente no seu passaporte, mas ao mesmo tempo quantas dificuldades e desconfiança. E isso evitava o quê? Protegia de quê? De nada, parece. Quarenta e poucos anos antes disso, a Europa, onde não se circulava livremente, estava mergulhada em armas – muitas e por todo o lado, de Paris às portas de Moscovo, de Atenas a Helsínquia. E nos séculos antes disso, fechar fronteiras protegeu de quê, garantiu o quê? De nada, nem sequer dentro das cercas erguidas em cada país. Matava-se e morria-se, queimava-se e ardia-se, apertava-se e sufocava-se, rasgava-se e sangrava-se, em abundância e todos os dias. Não havia (e não há) papéis, controlos, cercas e cadeados que parassem o mal e que contivessem o medo. E também não havia União como a conhecemos, imperfeita, às vezes ameaçadora e sufocante, exigente no desconforto que nos exige. Mas, também, à sombra da qual o que acontecia quarenta e poucos anos antes de o adolescente ter saído do seu país pela primeira vez não voltou a acontecer, até hoje. Pensemos nisso um bocadinho, mesmo que seja só durante a espera no controlo dos passaportes.

Advogado

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