Um contrato justo

Há um gato que já observo há anos que só este mês se tem prestado a dar-se a conhecer por mim.

Há um gato que já observo há anos que só este mês se tem prestado a dar-se a conhecer por mim. É uma inteligente entidade que muito tem ganho por me ter tratado com a rainha-mãe de todas as indiferenças.

Ele já me conhece desde 2012. Mas só agora, na quase-Primavera de 2016, é que se rende à abjecção de reconhecer que existo. Já foram três os momentos de loucura – possivelmente embriagado – em que interrompeu e alterou o sentido da marcha para vir oferecer-me o pescoço.

Recebeu a minha vassalagem com magnanimidade. Não me senti humilhado por aí além: só incrivelmente privilegiado por ter feito parte integral daquela transacção de sentimentos: o meu de deslumbramento afectivo, o dele da mais refrigerada condescendência.

O gato é um daqueles a que em Portugal chamam tigre apesar de não ser nada parecido com um tigre, até por ser, arrogantemente nestes tempos que correm, a preto-e-branco e, se não gostares, vai comer milho painço, mero humano.

Como todos os gatos desconhecidos aos quais nem o tributo duma pescada cozida podemos oferecer, ele prima pela inconsistência. Passam-se meses em que não me cumprimenta. Faz sempre questão de parar quando eu o chamo mas só para virar a cabeça na minha direcção e fingir, antes de seguir o majestático caminho, que não viu ali nada que não a paisagem estultificante do costume.

Ele sabe que basta ligar-me dois segundos duas vezes por ano para garantir quantias inesgotáveis de disponibilidade e admiração.

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