Identificado novo vírus idêntico ao VIH que ameaça os cavalos

Equipa de cientistas portugueses identificou um novo vírus equino e estima que afecta de forma fatal 10% dos cavalos. As autoridades portuguesas já foram alertadas para esta possível ameaça mas consideram que é muito cedo para o alarme.

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A investigadora Isabel Carvalho e o engenheiro agro-pecuário Alexandre Pires Adriano Miranda
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Linha celular infectada com o novo vírus equino DR

Chama-se NEV, sigla em inglês de “novo vírus equino”. E chamam-lhe “novo”, porque já existe um “velho”, muito parecido, que se chama VAIE, de vírus da anemia infecciosa equina, também conhecido por febre dos pântanos. Este lentivírus mais antigo já era reconhecido como um “primo” do VIH e provoca uma doença infecto-contagiosa que todos sabem ser fatal. Agora, o novo vírus será um “irmão” do vírus da sida, avisam os cientistas envolvidos na investigação. A equipa responsável pela descoberta contactou o Ministério da Agricultura e a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) e já reuniu com os responsáveis do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV) para avaliar a adopção de eventuais medidas de controlo

O NEV, ainda sem nome oficial em português, é muito parecido com o conhecido VAIE, manifesta-se com sintomas semelhantes ainda que pareça ser ainda mais agressivo. “É mais perigoso porque, para este vírus, não existe despiste ou protocolos de controlo da doença como os que já estão definidos para o VAIE há dezenas de anos e acaba, inevitavelmente, na eutanásia do animal infectado”, explica a investigadora Isabel Carvalho, que fundou a empresa de biotecnologia Equigerminal com engenheiro agro-pecuário Alexandre Pires. “É muito diferente do que conhecíamos. É muito mais parecido com o VIH. Normalmente, estes cavalos com o novo vírus morrem com cólicas graves. Morrem em pouco tempo, têm febres altas”, diz a veterinária, que acrescenta: “O que determina se é um vírus novo é o genoma do vírus e as proteínas. [Neste caso] são de tal maneira diferentes que concluímos que é um novo vírus. O VAIE não é patogénico e o nosso [o NEV] mata as células em pouco tempo. Em sete ou dez dias, as células estão praticamente todas mortas.”

Há quase 20 anos que Isabel Carvalho persegue este vírus de forma determinada. A história começa em 1997, quando a investigadora se encontrava a fazer o seu estágio de licenciatura, no laboratório do biólogo Nuno Ferrand, da Universidade do Porto, analisando amostras de cavalos com anemia. Durante o trabalho, percebeu que tinha amostras com um resultado negativo quando eram submetidas aos testes tradicionais que ainda hoje existem para a grave e conhecida forma de anemia (teste de Coggins) nos cavalos – a VAIE. Mas os testes mais apurados e sensíveis acusavam positivo para um agente patogénico misterioso. Seria outro vírus? Hoje, Isabel Carvalho garante que sim.

Entrou no programa doutoral da Universidade do Porto fazendo parte da equipa do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC), foi para Pittsburgh, nos EUA, com uma bolsa e terminou lá o doutoramento. Foi directora do Biotério do IBMC entre 2004 e 2010. Encontrou mais casos de cavalos que manifestavam alguns sinais de doença e com o mesmo resultado nos laboratórios: negativo nos testes tradicionais, positivo nos mais sensíveis. “Eram cavalos em estado livre, selvagem, do Norte de Portugal”, diz ao PÚBLICO com alguma reserva, adiantando que já detectou o vírus também em algumas coudelarias noutras regiões do país. Mais sobre quem e onde, prefere não dizer. “Essa informação é confidencial. Mas existe mais nos animais que estão no ar livre, nas pastagens. Menos nos estábulos”, adianta apenas.

Já com a empresa constituída e a equipa da Equigerminal formada, tentaram identificar e amplificar o genoma do VAIE neste vírus. “Nunca conseguimos.” O que conseguiram foi “isolar as partículas virais na microscopia electrónica e ver que era um lentivírus [um tipo de vírus de incubação lenta e que é próximo do VIH-1]”. “E quando pegámos em todas as sondas – e já pegámos em todas as sondas! –, não conseguimos amplificar nada do genoma do VAIE no NEV. Por outro lado, as proteínas foram analisadas por espectrometria de massa e os péptidos [pequenas porções de proteína] que temos aqui são de HIV e não de VAIE”, reforça.

Portanto, se o VAIE era um primo do vírus da sida, o NEV será um irmão. “Será sem dúvida um parente mais próximo, sendo que alguns péptidos são mesmo idênticos”, confirma a investigadora. Foi um processo longo e difícil, sublinha.  Primeiro, houve muitos obstáculos quando quis “importar” uma amostra do VAIE para usar em testes e comparações no laboratório. Depois, também conseguiu amostras de vírus de cavalos de outros países. Hoje tem provas suficientes para afirmar que o vírus está em vários países – Brasil, França e EUA, por exemplo – e acredita que o NEV afecta cerca de 10% dos cavalos em todo o mundo, incluindo Portugal. Uma percentagem bastante mais alta do que a conhecida anemia infecciosa equina que, de forma geral, afectará menos de 1% (excepto na população de cavalos no Brasil, que terá uma taxa entre os 5 e 10%). Em Portugal, oficialmente não há registo de casos de VAIE. A tradicional forma da doença conhecida como febre dos pântanos foi descrita pela primeira vez no século XIX em França, o vírus foi isolado em 1904 e o teste de Coggins que continua a ser usado hoje começou a ser feito em 1972.

Porém, o NEV existe em Portugal, avisa Isabel Carvalho. “Estamos a falar de uma doença provocada por um vírus que está a matar os cavalos em Portugal e no mundo”, sublinha, adiantando que a semelhança com o HIV é “muito intrigante”.

A equipa conseguiu isolar o vírus, cultivá-lo em laboratório, sequenciou parte do seu genoma, caracterizando-o de uma forma completa. Além disso, fez inúmeros testes in vitro para ver como o NEV se comportava e têm imagens que ilustram a forma como sai das células e como se replica. E os cientistas até desenvolveram testes para o detectar e distinguir rapidamente do VAIE. Pelo meio, já identificaram um anti-retroviral capaz de o matar, pelo menos in vitro.  “Começámos a desenvolver uma terapia. Temos um antiviral que consegue bloquear a replicação tanto do VAIE como do novo vírus. Entregámos o pedido provisional de patente [no Reino Unido] e em Junho vamos submeter o pedido final internacional de patente”, diz.

Para o registo da descoberta do NEV, já foi feito um outro pedido de patente, também no Reino Unido com pedido de urgência”.  A 27 de Novembro a Equigerminal recebeu o relatório “com classificação de excelente”. Porém, o relatório referia que havia mais do que uma invenção no mesmo pedido de patente. Assim, foi preciso dividir o pedido para várias patentes, o que foi feito a 6 de Janeiro último. “Se tudo continuar a correr bem, esperamos ter a patente aprovada até final de Março de 2016”, diz Isabel Carvalho.

Mas estamos longe de estar no fim desta história já com décadas. “Trata-se de uma doença debilitante, que põe em causa a performance, a saúde e talvez a sobrevivência dos cavalos”, diz Isabel Carvalho, avisando que “não existem ainda estudos epidemiológicos nem estudos de infecção para se conhecer bem a doença”. “Os custos deste tipo de trabalho são muito elevados e requerem um investimento que é incomportável para empresas biotecnológicas tão jovens”, lamenta.

Segundo explica os estudos da Equigerminal foram desenvolvidos com o apoio financeiro do QREN para as pequenas e médias empresas (PME) e capitais de risco. “Este é um projecto de vida, que começou antes do doutoramento, gerou uma empresa, dá emprego a sete pessoas, e já obteve um financiamento de 1,4 milhões de euros”, refere, sublinhando que o “único modo de desenvolver este projecto foi através de um plano de negócios e mostrando viabilidade económica e patentes”. E, desta forma, explica por que decidiu avançar para pedidos de patentes em vez de publicar artigos científicos sobre o novo vírus: “Na Europa a regra é first to file, nos EUA é o first to invent. Ou seja, na Europa primeiro temos de proteger (patentear) e só depois tornar público. Estamos neste momento a escrever os artigos científicos.”

 Ainda falta saber muita coisa. Se há animais sem sintomas mas infectados com o vírus, se os dois vírus interagem um como o outro e de que forma, se podem coexistir, se o NEV é transmitido por um vector (moscas) como o VAIE. “Esta história tem 20 anos e posso passar toda a minha vida a tentar responder a estas questões”, promete Isabel Carvalho. “As autoridades de saúde veterinária, nacionais ou internacionais, têm de investir em estudos transversais de grande envergadura”, avisa a investigadora, que remata: “O vírus está aí, afecta a saúde dos cavalos e do mercado que os envolve, e é urgente tomar medidas como se fez para o VAIE.”

Ministério da Agricultura à espera de validação internacional?
Isabel Carvalho garante que quando as suspeitas sobre o vírus equino ganharam força suficiente, para serem consideradas um possível risco de saúde pública animal, começaram também os contactos com as autoridades portuguesas.

O primeiro contacto com a DGAV foi em 2004, depois novamente em 2008, e em 2014 falaram com o então secretário de Estado da Alimentação e da Investigação Agro-alimentar, Nuno Brito, lembra a investigadora. “As autoridades foram alertadas ainda numa fase em que pensávamos que podia ser uma variante do VAIE”, refere, lamentando que ao longo dos anos nunca tenha sido dada importância à descoberta. “O que nos foi dito é que iam tentar discutir isto no seio da União Europeia [o problema não era exclusivo de Portugal], num pequeno grupo. E nunca mais nos foi dado mais feedback”, queixa-se Isabel Carvalho, que sublinha que foram feitas várias tentativas de contacto, por telefone e por email, com as várias direcções gerais de veterinária. Sempre sem resposta.

“Recentemente, ainda no anterior governo, quando soube que estávamos mesmo perante um novo vírus, voltámos a enviar um email. Também não tivemos resposta. Agora com a nova direcção voltámos a alertar.”

Ainda em Fevereiro, o gabinete de comunicação do ministro da Agricultura, Capoulas dos Santos, confirmava ao PÚBLICO que “a DGAV já se reuniu com o INIAV tendo esta questão em agenda, pelo que o INIAV se disponibilizou para receber a representante da empresa”. “Naturalmente, um processo desta natureza (descoberta, reconhecimento e investigação sobre um novo vírus) é demorado, pois importa saber quais são os seus efeitos e capacidade de transmissão, que ainda não são conhecidos”, adiantava a resposta por email do ministério, que confirmava que a DGAV conhecia o registo deste vírus nas bases de dados europeias, feito pela Equigerminal.

No final de Fevereiro, houve um encontro entre os investigadores da Equigerminal e o INIAV. Isabel Carvalho não está satisfeita com o resultado da conversa com Miguel Fevereiro, director da Unidade de Produção e Saúde Animal. “A resposta foi que não sabia como se faz este reconhecimento, e que do ponto de vista do INIAV só irá dar relevância ao processo quando a comunidade científica internacional assim o fizer. A questão do reconhecimento oficial seria uma questão a colocar a DGAV”, adianta a investigadora, que acusa o INIAV de uma “atitude de negação”.

“Tentámos colaborar com o INIAV para resolver um problema dos cavalos. O doutor Miguel Fevereiro é insensível ao facto de existir um novo lentivírus dos cavalos que anda a circular livremente na nossa população de equinos e, mais grave ainda, que pode fazer reacção cruzada com o vírus da anemia infecciosa equina no immunoblot, o teste confirmatório desta infecção”, refere Isabel Carvalho. “Na falta de resposta da DGAV e do INIAV, teremos de ser nós a tentar iniciar esse processo [de reconhecimento do vírus] noutro país.”

O PÚBLICO tentou obter uma reacção do Ministério da Agricultura após este encontro dos responsáveis do INIAV com os representantes da Equigerminal. Mas sem sucesso, até ao início da noite de ontem (quinta-feira).

E por que é a Equigerminal esperou tanto tempo para vir a público com esta informação? “Para dizer que há um novo vírus é preciso fazer a comprovação. Foi preciso submeter o vírus a um depósito em Inglaterra, o Public Health of England. E eles repetiram as nossas experiências e comprovaram que sim, que o vírus matava, e emitiram um certificado positivo para o novo vírus. Até há pouco tempo, acreditávamos que podíamos estar perante uma variante que escapava ao teste de despiste tradicional. Só há um ano e meio é que sabemos que é um vírus novo e que é um lentivírus”, conta Isabel Carvalho.

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