Telmo Zarra: uma sombra para Messi e uma lebre para Ronaldo

Cumpre-se a 23 de Fevereiro uma década sobre a morte de um dos mais prolíficos avançados da história do futebol espanhol.

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Entre Lionel Messi e Cristiano Ronaldo tem havido, ao longo dos anos, espaço para recorrentes comparações. Estilo de jogo, atributos físicos e técnicos, assistências, golos, títulos individuais e colectivos, são muitos os parâmetros que os unem e poucos os que os separam. Um deles, pelo menos por enquanto, chama-se Telmo Zarra, uma espécie de “intruso da história” no duelo contemporâneo pelo topo da lista de goleadores da Liga espanhola. Dentro de dois dias, cumprir-se-á uma década sobre a morte do mais demolidor dos avançados nascidos em Espanha. Uma lenda que nem a proeza alcançada nesta semana por Messi poderá alguma vez apagar.

Quando olhamos para a pirâmide dos melhores marcadores de sempre do campeonato espanhol, vemos o astro do Barcelona confortavelmente sentado no topo e à procura de um novo desafio, depois de ter ultrapassado na última quarta-feira a barreira dos 300 golos.

Em Novembro de 2014, o argentino já havia superado a marca estratosférica de Zarra (251 golos, na versão mais consensual), uma referência eterna da era dourada do Athletic Bilbau, mas apenas em termos absolutos. E a filha do antigo jogador já o havia feito notar, na devida altura: “Supera o número de golos, mas não bateu um recorde. O recorde será batido quando alguém fizer 251 golos em 277 jogos”, argumentou Carmen Zarra. Messi conseguiu-o em 289.

Nesse sentido, o legado de Telmo Zarraonandia Montoya (compreende-se por que razão o apelido acabou amputado) fará sempre alguma sombra ao actual número 10 do Barcelona. E o facto de terem passado quase 60 anos até alguém rivalizar com os seus números diz muito sobre a dimensão de um jogador que era reconhecido tanto pela sua performance desportiva como pelo desportivismo que lhe corria no sangue.

Há um episódio, de resto, que faz do avançado basco uma bandeira precoce do fair-play. Um gentleman capaz de contornar o egoísmo que é tantas vezes o oxigénio dos goleadores. Num jogo com o Málaga, no Estádio La Rosaleda, Zarra saltou com o central Arnau, que caiu desamparado e ficou a queixar-se. Na sequência do lance, o avançado do Athletic Bilbau ficou isolado perante o guarda-redes López, mas optou por atirar a bola para fora para que o adversário fosse assistido. “Foi uma decisão imediata, nem pensei muito nela”, diria mais tarde. Passava a haver mais para admirar do que “apenas” o seu poder de fogo.

Numa era de defesas duros e de entradas muitas vezes violentas, de intimidação pela via da força e de critérios largos de arbitragem, Telmo, “O Medroso” — alcunha que lhe foi colada nos jogos de rua, ainda na infância — teve de adaptar-se. O jovem nascido em Erandio, em Janeiro de 1921, herdara dos irmãos mais velhos (foi o sétimo de uma família com dez filhos, cinco rapazes e outras tantas meninas) o gosto pelo futebol. E tinha de agradecer-lhes o privilégio de poder recrear-se com uma bola a sério, em vez de uma imitação artesanal feita de trapos e imaginação. O pai, austero q.b., torcia o nariz à possibilidade de mais uma “fuga” familiar para o futebol. Não podia adivinhar o talento que tinha em mãos.

Zarra não demorou a subir na carreira (saiu directamente do Erandio Club para o Athletic, com 19 anos) e na vida, com a mesma facilidade com que subia acima dos adversários para fazer uso de um jogo aéreo invejável. O futebol que lhe saía do corpo em estado puro, de toque curto e finta fácil, moldou-se ao contexto e transformou-se em acção mecânica: receber e finalizar, de todas as maneiras e feitios. E nessa redoma específica, não tinha concorrente à altura.

Foi o melhor marcador da Liga em 1945, 1946, 1947, 1950, 1951 e 1953, assinou 38 golos numa temporada de 30 jogos (Hugo Sánchez faria também 38, em 1986, mas em 35 partidas), ajudou a selecção de Espanha em 20 ocasiões — e respondeu com 20 golos. Um deles, frente à Inglaterra no Mundial de 1950, ficou para a história como “golo de Zarra”, sobretudo pelo simbolismo, já que colocou a Espanha pela primeira vez nas meias-finais do torneio.

Afável fora do campo, implacável dentro dele, Zarra também conta na folha de serviço com cinco golos num célebre 7-1 do Athletic sobre a Real Sociedad, um rival eterno, a 4 de Março de 1951. Nesse particular, há pontos de contacto com Cristiano Ronaldo, que conseguiu a proeza por duas vezes em 2015, à custa de Granada e Espanyol. Cinco golos, de resto, é o que falta ao português para alcançar os míticos 251 do basco na Liga. E ainda tem uma margem folgada de 53 jogos para o conseguir. Então, sim, pode definitivamente falar-se em recorde.

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