David Bowie: os fotógrafos que apanharam os fantasmas dele

Na fotografia, o talento de Bowie era anterior à própria imagem. Há três nomes que se destacam entre todos os fotógrafos com quem trabalhou: Mick Rock, Brian Duffy e Masayoshi Sukita.

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Numa dessas páginas que se enchem de citações de famosos, David Bowie diz isto: “O que eu gosto é que a minha música acorde os fantasmas que há dentro de mim. Não os demónios, mas os fantasmas”. Para quem tenha tropeçado em alguma coisa relacionada com a cultura (e arte contemporânea) nos últimos 50 anos já sabia que era assim — Bowie entrou e saiu de várias capas, como um animal que abandona a pele, uma e outra vez, para se renovar, para se purificar.

Mas para o caso de alguém estar mais esquecido, as imagens dos obituários de David Bowie que nos inundaram nos últimos dias (morreu no dia 10 de Janeiro) mostram-nos como gostava de libertar os seus fantasmas (para logo a seguir os esvaziar). E como lhe dava prazer inventar novas imagens. E não eram, quase nunca, imagens banais, cândidas. A fotografia — talvez até mais do que o vídeo e o cinema — foi um dos veículos que mais utilizou para nos seduzir (capa de Hunky Dory, 1971), para nos perturbar (Aladdin Sane, 1973), para nos chocar (Diamond Dogs, 1974) ou para nos baralhar (Heroes, 1977). A construção da imagem das personas que foi alimentando começava aí, derivando para as outras artes (tantas) que quis e soube cultivar.

Na fotografia, o talento de Bowie era anterior à própria imagem, revelando-se logo em quem escolhia para tornar visíveis as suas criaturas, as suas criações ou — mais nas duas últimas décadas — os ambientes em que se queria mover. Essa astúcia não serviria de nada se ele não fosse talvez um dos corpos humanos que mais se dobraram a favor da imagem fotográfica e se, claro, ele não fosse algo próximo do cúmulo da fotogenia, um dos mais expressivos e sedutores rostos da cultura pop.

Talvez um pouco toldados pela admiração cega, são muitos os que dizem que entre as centenas de milhares de imagens de Bowie (de retrato ou em palco) quase nenhuma é inconsequente. O que quer dizer que atingem quase sempre os propósitos últimos com que foram criadas: cativar, conquistar atenção, dar prazer. É certo que a dimensão e o génio musical de Bowie não sairiam beliscados se nunca tivesse sido fotografado, mas se fosse “feio como o pecado e um recluso ao longo da vida”, como escreve no catálogo da exposição David Bowie is… o presidente da editora Condé Nast, Nicholas Coleridge, os seus fãs não seriam indiferentes a isso.

No início da carreira, no final dos anos 60, Bowie usou a fotografia justamente num tempo em que era ela que chegava a mais pessoas e de forma mais rápida e barata (capas de discos, cartazes, posters de cabeceira, jornais e revistas). Nessa altura, a fotografia funcionou como um óleo perfeito para a máquina Bowie arrancar, e a partir daí tornou-se epidérmica tanto na sua carreira, como na sua vida. Nestes dias necrológicos houve quem lhe chamasse “o homem foto gráfico”, atirando-o para o campo da representação criada com mestria, perfeita e completa.   

Para Coleridge, nenhuma estrela rock percorreu um caminho tão longo ao lado de fotógrafos tão importantes como o fez David Bowie. Essa trajectória e projecção mediática é de tal forma vasta e diversificada que é possível traçar uma história da fotografia apenas com as imagens de Bowie produzidas ao longo das últimas quase cinco décadas. O colossal legado imagético que deixa, em quantidade e qualidade, só foi possível porque soube rodear-se dos melhores e mais desafiantes fotógrafos ao longo das várias fases da sua carreira. A contagem (longe de exaustiva) pode começar com Brian Ward (que o capta entre o hippie pré-rafaelita de Hunky Dory e o alien glam de Ziggy Stardust…), ir até Terry O’Neill, Lynn Goldsmith, Bruce Weber e terminar em Frank Ockenfelds, Annie Leibovitz, Herb Ritts e Anton Corbjin. Mas há três nomes que se destacam entre todos os fotógrafos com quem Bowie trabalhou: os ingleses Mick Rock e Brian Duffy e o japonês Masayoshi Sukita.

Antes de Hunky Dory (quarto álbum de estúdio), Mick Rock (que odeia que lhe chamem “o homem que fotografou os anos 70”) nunca tinha ouvido falar de David Bowie. Ficou “viciado” no disco e quis conhecer o autor. Um mês antes do lançamento de Ziggy…, em Junho de 1972, conseguiu um encontro nos bastidores de um concerto em Birmingham e foi logo ali que aconteceu a primeira sessão de fotografia com o músico, que estava a um passo de provocar uma tempestade no universo da música ao dar corpo (e imagem) ao andrógeno (e o seu mais famoso) alter-ego.

A “química” entre os dois resultou de tal maneira que depois das sessões que seguiram Bowie haveria de confessar: “O Mick vê-me da mesma maneira que eu me vejo”. Rock começou a fotografar no final dos anos 60 (Syd Barret), depois de uma trip de LSD durante a qual roubou uma câmara a uma loira com… “mucho appeal”. O som dos clicks fascinou-o a um ponto que nunca mais parou. Até hoje. Apesar de ter cruzado vários géneros, o seu talento revelou-se sobretudo nas imagens de concertos e nas fotografias de rua com músicos, onde tentava tornar inclusiva a imagem de artistas aparentemente distantes. É dele a célebre fotografia em que, durante uma actuação ao vivo, em 1972, Bowie se aninha para tentar morder a guitarra de Mick Ronson, um momento que passou à história como o fellatio de Bowie a Ronson. Como é dele uma das melhores imagéticas à volta de Ziggy, cheia de referências à sexualidade, à identidade ou à moda, ao ponto de haver quem defenda que foi Rock quem de facto começou a construir David Bowie.

Mick Rock: Há quem diga que foi ele que começou a construir David Bowie Mick Rock/Retna Ltd./Corbis
Mick Rock: Shooting for Stardust. The Rise of David Bowie & Co (Taschen)
Mick Rock: Shooting for Stardust. The Rise of David Bowie & Co (Taschen)
Mick Rock: Shooting for Stardust. The Rise of David Bowie & Co (Taschen)
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Mick Rock: Há quem diga que foi ele que começou a construir David Bowie Mick Rock/Retna Ltd./Corbis

No mesmo ano, o caminho de Masayoshi Sukita cruza-se com o de Bowie, naquela que se tornou numa das mais profícuas e desafiadoras ligações entre artistas do Oriente e do Ocidente nas últimas décadas. Entre todos, Sukita foi o fotógrafo com quem Bowie mais se relacionou (cerca de 45 anos). A história desse encontro é parecida com a de Rock. Durante uma viagem a Londres para fotografar os T Rex, de Marc Bolan, Sukita viu um “estranho” cartaz a anunciar um concerto de Bowie como Ziggy Stardust. A assistente de Sukita telefonou para a editora RCA a perguntar se podiam conhecer Bowie. A resposta foi sim, e o portefólio que Sukita levou para os bastidores impressionou o músico. Poucos dias depois estavam na primeira sessão fotográfica num estúdio alugado em Londres. E, em 1973, Bowie aterrava no Japão (país cuja cultura sempre admirou) para uma estadia com Iggy Pop, na qual o fotógrafo foi o anfitrião.

A amizade e a admiração mútua cresceram ao longo dos anos. Sukita encontrou a sua musa, Bowie descobriu um olhar especial que o ajudou a cunhar uma imagem que juntava um “verniz de alto brilho” com um “niilismo irónico”. São do japonês algumas das melhores fotografias das fases Ziggy e Aladdin dos anos 70 (tornaram-se icónicos os retratos de estúdio com fundo vermelho e roupas de Kansai Yamamoto). É dele a fotografia de capa de Heroes (1977), uma das mais emblemáticas de Bowie, onde o músico usa toda a sua energia corporal para referências ao teatro japonês kabuki e ao expressionismo alemão, sobretudo a Erich Heckel e ao seu Roquairol (que Iggy também usaria na capa de The Idiot, em 1977). Sukita fotografou Bowie em dezenas de sessões, mas nem sempre com um propósito específico de criar uma persona ou seguir por uma direcção pré-fabricada, como bem revela a fotografia de Bowie no metro de Tóquio (1978), como o mais anónimo passageiro.

Por último, ainda em 1972, surge Brian Duffy (1933-2010), um dos três “terríveis” de Londres, juntamente com David Bailey e Terence Donovan (fotógrafos de publicidade e moda), que foi o criador da chamada “Mona Lisa das capas de discos”. Ou seja, a icónica fotografia de Aladdin Sane, onde Bowie surge sobre fundo branco, com muito flash e maquilhado por Pierre Laroche com um raio vermelho e azul na cara que, para além de ter abanado o planeta, alcançou a estratosfera da simbologia pop. Duffy, com fama de ter mau feitio, foi responsável não só pela sessão fotográfica como por todo o design do disco (que era para se chamar A Lad Insane, não fosse um mal-entendido que Bowie adorou). Para além deste, ajudou a construir a imagem de Lodger (1979) e Scary Monsters… (1980).

Se Mick Rock ficou conhecido por ter tirado “a” fotografia aos anos 70, Duffy ganhou o estatuto do “homem que fotografou os anos 60”. A atitude de gozo (entre o reactivo e despreocupado) de Rock sempre que lhe aplicam este carimbo foi muito diferente do peso que Duffy sentiu com um epítome em tudo semelhante. Duffy montou uma estrutura com alguma dimensão para gerir o seu negócio, mas desmoronou tudo quando, em 1979, uma empregada lhe disse que não havia papel higiénico no escritório. Esta observação aparentemente banal provocou-lhe um ataque de fúria que teve duas consequências imediatas: Duffy abandonou a carreira de fotógrafo e decidiu queimar todos os seus negativos (David Bowie incluídos). A sorte (para os arquivos, para posteridade e… para quem gosta de Bowie) é que a película fotográfica não arde facilmente e quando começa a pegar fogo faz muito fumo. Ao que conta a BBC, os bombeiros chegaram depressa, e não só extinguiram o pequeno incêndio como salvaram boa parte de uma vida de trabalho.

Bowie sobre Sukita em 2015: “É um artista comprometido, um artista brilhante. Chamar-lhe-ia um mestre” Masayoshi Sukita/cortesia de Morrison Hotel Gallery
São do japonês Masayoshi Sukita algumas das melhores fotografias das fases Ziggy e Aladdin dos anos 70 Masayoshi Sukita/cortesia de Morrison Hotel Gallery
Masayoshi Sukita/cortesia de Morrison Hotel Gallery
Qualquer que fosse o objectivo ou o contexto das fotografias a Bowie, Sukita tinha apenas um desejo: que fossem contemporâneas Masayoshi Sukita/cortesia de Morrison Hotel Gallery
A sessão que deu origem à fotografia de capa de Heroes (da fase berlinense de Bowie) foi tirada no Japão. Masayoshi Sukita/cortesia de Morrison Hotel Gallery
Esta era a fotografia preferida de Sukita, mas Bowie escolheu outra da série para a capa de Heroes Masayoshi Sukita/cortesia de Morrison Hotel Gallery
Masayoshi Sukita/cortesia de Morrison Hotel Gallery
Masayoshi Sukita/cortesia de Morrison Hotel Gallery
Sukita tinha fascínio pelo carisma pela expressividade corporal de Bowie Masayoshi Sukita/cortesia de Morrison Hotel Gallery
Masayoshi Sukita/cortesia de Morrison Hotel Gallery
Masayoshi Sukita/cortesia de Morrison Hotel Gallery
Masayoshi Sukita/cortesia de Morrison Hotel Gallery
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Bowie sobre Sukita em 2015: “É um artista comprometido, um artista brilhante. Chamar-lhe-ia um mestre” Masayoshi Sukita/cortesia de Morrison Hotel Gallery

Só quando lhe foi diagnosticada uma doença no fígado, é que Duffy autorizou que um dos seus filhos, Chris, começasse a juntar as pontas que sobraram dessa ira incendiária. Brian Duffy morreu em 2010 e já não pode ver a sua fotografia de Aladdin na capa do catálogo da celebrada exposição David Bowie is…, inaugurada em 2013, em Londres. As fotografias de David Bowie de raio na cara estavam lá. O que pode querer dizer que ainda temos a matriz que deu imagem a Aladdin Sane.

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Duffy foi o criador da chamada “Mona Lisa das capas de discos”: a icónica fotografia de Aladdin Sane Brian Duffy
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