Os curdos são o inimigo que Erdogan escolhe

Os curdos têm sido o grande alvo da luta contra o terrorismo turca. Mas não são eles os autores dos grandes ataques.

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"Há outro país que lute contra a organização terrorista chamada Daesh de forma mais determinada que nós?", perguntou Erdogan KAYHAN OZER/Gabinete de Imprensa Presidência Turca/AFP

O Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, tem muitos inimigos – embora alguns sejam mais da responsabilidade das suas políticas do que outros. Por exemplo, ao lançar no Verão com todo o fôlego a ofensiva militar contra “todos os terrorismos”, escolheu como principal alvo os curdos, sem ter igual preocupação com os extremistas que disputam território na Síria ao Presidente Assad – outro inimigo. Mas os grandes atentados terroristas que têm abalado a Turquia têm sido atribuídos ao Estado Islâmico, com quem Erdogan não se tem perturbado muito.

“Há outro país que lute contra a organização terrorista chamada Daesh (a palavra em árabe formada pela sigla Estado Islâmico) de forma mais determinada que nós e que tenha pago um preço mais alto?”, interrogou Erdogan, de forma retórica, num discurso aos embaixadores turcos, que se reuniam esta terça-feira em Ancara, comentando o atentado em Istambul. “Este incidente mostra mais uma vez que temos de permanecer unidos contra o terrorismo. Não nos interessa quais são os seus nomes e abreviaturas. A posição resoluta da Turquia vai continuar a mesma”, assegurou.

No mesmo discurso, fez pouco da petição internacional assinada por 1128 académicos de 89 universidades, incluindo figuras de renome internacional como o linguista Noam Chomsky, o geógrafo David Harvey e o sociólogo Immanuel Wallerstein, em que se apela ao fim das operações de segurança no Sudeste da Anatólia, contra a guerrilha do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que a Turquia considera terroristas, e que foram retomadas com especial vigor a partir das inconclusivas eleições legislativas de Junho.

A petição classifica estas operações como um “massacre”, mas o Presidente turco chama ignorante a quem a assinou, segundo o jornal Today's Zaman. “Ei, vocês que se auto-designam intelectuais! Vocês não são pessoas esclarecidas, andam às escuras. Esta é a mentalidade do colonialismo”, afirmou, convidando Chomsky a vir à Turquia e a alojar-se na zona curda. Mas mais graves do que as palavras rudes de Erdogan são as acções da Direcção de Educação Superior, que anunciou que vai agir legalmente contra todos os académicos turcos que assinaram a petição.

As forças turcas mataram 3100 membros do PKK em 2015, segundo o balanço oficial. Só desde 15 de Dezembro, quando foi imposto um recolher obrigatório em várias cidades da província de Diyarbakir, foram mortos 600 “terroristas do PKK”, anunciou esta terça-feira o exército turco. O Partido Democrático do Povo, pró-curdo, faz as contas de outra forma, diz o Guardian: assegura que pelo menos 161 civis foram mortos nas últimas semanas, e milhares foram obrigados a deixar as suas casas na região, onde há verdadeiras batalhas urbanas. Mas os jornalistas estão proibidos de entrar nestas áreas.

Öcalan e o filósofo
A obsessão de Erdogan e do seu primeiro-ministro Ahmet Davutoglu é impedir que na Turquia possa nascer um território autónomo, como já existe no Norte do Iraque e, mais recentemente, o território de Rojava, que surgiu no Norte da Síria no caos da guerra: um território autónomo curdo, governado pelos curdos, inspirado pela filosofia que o fundador do PKK, Abdullah Öcalan, desenvolveu já na cadeia, depois de ter sido capturado pela Turquia, em 1998, e colocado numa ilha-prisão ao largo de Istambul.

Em traços bastante largos, a nova grande ideia de Öcalan, que começou como um guerrilheiro maoista, é Inspirada pela obra do filósofo americano Murray Bookchin. Considerava que tanto os governos marxistas como liberais provaram que o Estado corrompe a liberdade, e por isso defendia o modelo helénico da democracia. Öcalan viu abrir-se aqui um caminho para uma nova forma de revolução: libertação sem criar uma nação-Estado curda, explica o jornalista americano Wes Enzinna no New York Times, que no Verão passado esteve no Rojava uma semana, a dar aulas de jornalismo. O PKK só atacaria se fosse atacado, postulou Öcalan.

Ainda que as prioridades possam estar baralhadas, a questão curda e a posição que Ancara assumiu em relação à Síria são grandes condicionantes da vida política e das relações exteriores turcas. A Turquia faz fronteira com a guerra na Síria em termos geográficos, e também em termos diplomáticos: tinha ambições de ser um potencial mediador entre as duas potências regionais do Médio Oriente, o Irão e a Arábia Saudita, que apoiam interesses opostos na guerra civil síria.

Mas, ainda que tenha uma forte dependência do gás natural iraniano, que tende a acentuar-se agora que as relações com a Rússia se deterioram, a Turquia está a ser empurrada mais na direcção de Riad: no início do ano, quando o reino executou 47 pessoas, entre elas o líder religioso xiita Nimr al-Nimr, media iranianos sublinharam que Erdogan tinha visitado Riad um dia antes das execuções, tentando associar os dois eventos.

 Se a Turquia de Erdogan tem sido prolífica a criar inimigos, no fim do ano conseguiu reatar uma amizade: com Israel, país com o qual tinha cortado relações diplomáticas em 2010, após um assalto de comandos israelitas a um navio da flotilha que tentava furar o bloqueio a Gaza, no qual morreram dez activistas.

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