“É uma prenda muito boa, vamos sair da aflição do mar”

Trinta famílias do bairro piscatório de Esmoriz, Ovar, são realojadas no sábado. Passaram uma vida com o coração nas mãos, com o mar à porta.

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O novo bairro tem habitações unifamiliares, de tipologia T2 e T3 Adriano Miranda

Maria de Lurdes Paquete não cabe em si de contente. Abre um grande sorriso quando lhe falam na casa nova. “A ansiedade ainda vai matar-me. Não durmo de tão ansiosa que estou. O T2 é pequeno, mas é um luxo. Se não der para pôr uma mesinha na cozinha, põe-se na sala, e o guarda-fatos é um encanto”.

No próximo sábado, Maria de Lurdes vai receber a chave do T2, depois de anos a viver na primeira linha de mar. Aprendeu a conhecer-lhe os humores. “A gente vê as vagas e está sempre acautelada”. Uma vez, o mar entrou-lhe pela porta e o susto foi grande. “Abri logo a fossa da marquise e aquilo foi tudo”. Se assim não fosse, ficaria com água pelos joelhos, como aconteceu na casa do vizinho. Agora vai ter um T2.

“É uma prenda muito boa, vamos sair da aflição do mar”. E ter melhores condições de vida. “Vou para melhor, e pagar menos. Estou tão contente. A minha casita é muito fria, muito baixinha, o telhado é antigo”.

Maria de Lurdes anda a arrumar as coisas para levar. “Tenho as freimas todas aqui em cima”, diz, apontando para as costas. A caminho dos 50 anos, limpa o lixo das praias nos três meses de Verão e depois fica sem trabalho. A casa nova tira-lhe o sono por bons motivos.   

Fernanda Matos vive praticamente em cima do mar. Há dias em que coloca o som da televisão mais alto para não o ouvir. Quando as ondas rebentam na areia, a casa parece estremecer. Agora está prestes a mudar-se com tudo o que tem para um novo complexo habitacional de fachadas coloridas.

A habitação social que albergará 30 famílias, cerca de 100 pessoas, do bairro de pescadores de Esmoriz está pronta. Sábado de manhã, as chaves das habitações unifamiliares, de tipologia T2 e T3, serão entregues a quem aprendeu a viver com o mar à porta, com o coração nas mãos. Fernanda Matos terá um T2 – queria um T3, porque tem dois filhos. E vai fazendo contas à vida. “Vou levar o que tenho até poder comprar novo, não tenho dinheiro para comprar o fogão”.

Francisca Ferreira já tem as malas prontas, meteu tudo o que tem em sacos plásticos. “Os móveis vão para o lixo, estão todos podres”, conta. Ainda não entrou na nova casa, sabe que tem direito a um T3, mas o coração aperta quando se lembra que vai deixar a casa onde nasceu há 30 anos. “Vamos lá ver se consigo deixar esta casa, custa um bocado”, confessa esta mãe de três filhos pequenos. Ela e o marido estão desempregados. “É bom ir para ali, mas isto está mal de dinheiro”, desabafa.

O sonho de um bairro  
A vizinha Ana Paula Ferreira ainda não fez as malas, mas tem caixotes e jornais preparados para embrulhar a louça. A filha de 15 anos anda apressada com as mudanças. “Vamos levar a cama, as mesinhas de cabeceira, a cómoda, o fogão e o frigorífico. Não precisamos de levar o guarda-vestidos porque já tem”. A casa de madeira onde ainda moram sofreu bastante ao longo dos anos, o mar nunca lhe entrou pela porta, mas o vento levantou-lhe as telhas num Inverno impiedoso. Nessa altura, a família teve de dormir no parque de campismo.

Ana Paula é doméstica, o marido e o filho mais velhos são pescadores no desemprego, só voltarão ao mar em Junho. Anda preocupada com a situação. “E se não der para pagar a renda? Vamos ter de apertar”. O coração balança. “Estou contente, mas vamos sair do que é nosso, vamos ter saudades”. “Ainda não vi a casa nova, só quando nos derem a chave é que vamos para lá. Não sei como vai ser, se Deus nos ajudar, queremos sair daqui, mas vamos estranhar”, diz. A família terá mais espaço na casa nova e os seus filhos já não precisarão de dormir na sala.    

As novas habitações têm à frente um pedaço de terra despido que em breve será tratado. Deverá ser um espaço recreativo para as crianças e uma área para pequenos espectáculos, mas o projecto ainda está em análise.

O presidente da Câmara de Ovar, Salvador Malheiro, garante que sábado será dia de festa. “Vai ficar na história da praia de Esmoriz e de todo o município de Ovar. É uma prenda de Natal para a comunidade piscatória”. Este realojamento não é um realojamento qualquer. Demorou tempo, mais de duas décadas, envolveu várias entidades, foi necessário pensar num projecto com pés e cabeça, definir objectivos. Foi preciso comprar terreno, desenhar o projecto, arrancar com a obra, investir cerca de dois milhões de euros sem qualquer comparticipação financeira vinda do exterior.

“Era um sonho que poucos pensavam que iria ser concretizado tendo em conta a realidade do bairro”. A construção avançou, as casas estão feitas, seleccionaram-se as famílias, as rendas são estipuladas em função dos rendimentos de cada agregado. A localização foi fundamental: quem vivesse na primeira linha de mar, e há bastante tempo, tinha direito a casa. E quem tem casa nova dá autorização para a velha ir abaixo e permitir que se avance com um arranjo urbanístico.

O processo não está totalmente fechado. O presidente da Junta de Esmoriz, António Bebiano, adianta que é preciso pensar no que se quer que seja o bairro dos pescadores, e as respostas podem surgir depois de sábado. “Este realojamento é um anseio da população que não responde às necessidades do bairro de pescadores na sua globalidade, mas é um passo muito grande no sentido de dar dignidade a quem mais precisa”, refere.

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