O que a esquerda andou para aqui chegar

Há um mês e meio começou uma aproximação inédita. Como Costa, Jerónimo e Catarina ultrapassaram 40 anos de divergências e assinaram um compromisso que garantem ser “duradouro”.

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Enric Vives-Rubio

As reuniões eram discretas, com um grau de secretismo que não servia apenas o propósito de avançar nas negociações sem intromissões exteriores. Era uma exigência, sobretudo do PCP. Mas há acasos que nem o mais discreto negociador pode prever. Como cruzar-se com jornalistas, depois da meia-noite, no (escasso) trânsito da Avenida António Augusto de Aguiar, em direcção ao Marquês do Pombal, em Lisboa. António Costa no banco da frente do primeiro carro. Ana Catarina Mendes e Carlos César no banco traseiro da viatura de trás. Todos com o telemóvel na mão.

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As reuniões eram discretas, com um grau de secretismo que não servia apenas o propósito de avançar nas negociações sem intromissões exteriores. Era uma exigência, sobretudo do PCP. Mas há acasos que nem o mais discreto negociador pode prever. Como cruzar-se com jornalistas, depois da meia-noite, no (escasso) trânsito da Avenida António Augusto de Aguiar, em direcção ao Marquês do Pombal, em Lisboa. António Costa no banco da frente do primeiro carro. Ana Catarina Mendes e Carlos César no banco traseiro da viatura de trás. Todos com o telemóvel na mão.

Vinham da sede comunista, na Rua Soeiro Pereira Gomes. Aconteceu no passado dia 4, e tinham tido uma reunião pouco conclusiva com a direcção do PCP. Por essa altura, há 15 dias, já não havia grande celeuma à volta das medidas concretas que o acordo iria consagrar. O que faltava era um acordo político que satisfizesse as duas partes.

Nas várias voltas que este acordo deu, o PCP liderou a dança. Foi Jerónimo de Sousa, logo no dia 7 de Outubro, que afirmou, à saída de uma reunião com António Costa que o seu partido estava pronto “para assumir todas as responsabilidades, incluindo governativas”. Isto foi dito em público. Dentro da sala, Costa “só não abriu a boca de espanto porque parecia mal…”, garante um dirigente do PS.

Mas foi o mesmo partido que, até ao fim, impediu que existisse um acordo, comum, entre todas as forças de esquerda e se recusou a assinar um compromisso mais explícito sobre a duração do apoio parlamentar a um eventual governo do PS. Essas viriam a ser duas das maiores críticas que PSD e CDS fizeram sobre a fragilidade da maioria parlamentar da esquerda.

Para os comunistas, mais importante do que o acordo, formal, é a “palavra dada” – têm repetido alguns dirigentes. Costa também tem dito, aos seus, que confia “a 114%” no PCP.

Não menos surpreendente foi a forma rápida como o Bloco de Esquerda e o PS se entenderam quanto às medidas e quanto ao alcance político do acordo. Catarina Martins foi a primeira dos três a estabelecer regras para uma negociação. Fê-lo logo na pré-campanha, num debate com António Costa, na TVI. “Se o PS estiver disponível para abandonar esta ideia de cortar 1600 milhões nas pensões, abandonar o corte na TSU e abandonar esta ideia do regime compensatório, cá estarei no dia 5 de Outubro para conversar sobre um governo que possa salvar o país."

Não foi a 5, foi a 12 de Outubro. Nesse primeiro encontro, Costa terá percebido que o BE iria tão longe como o PCP. E como, em simultâneo, percebia que o diálogo com Passos e Portas não avançava, cedo colocou todas as fichas nessa hipótese que parecia, então, remota.

No entanto, num mês, os partidos de esquerda conseguiram fechar o acordo sobre um conjunto de medidas que todos aceitam e que fará parte do programa do governo que o PS apresentará ao Parlamento, agora que António Costa foi indigitado primeiro-ministro.

A meio deste processo, os três líderes foram falando. Umas vezes ao telefone, outras em encontros discretos, longe dos olhares dos jornalistas. Nestas conversas desbloqueavam pontos negociais mais difíceis e combinavam o que diriam em público sobre as negociações.

Foi isso que permitiu um discurso quase unânime à saída da primeira audição com Cavaco Silva, antes de o Presidente indigitar Passos Coelho. Todos repetiram que isso seria “uma perda de tempo”.

Na altura, talvez ainda estivesse em aberto o calendário para a devolução da sobretaxa do IRS, ou o ritmo do aumento do salário mínimo nacional. Mas a “cola” política do acordo já era clara. Nas palavras do chefe dos negociadores do PS, Pedro Nuno Santos, numa entrevista ao PÚBLICO, isso tornava-se cada vez mais claro: "Estamos a fazer o acordo e ele prevê como o governo se deve comportar em situações excepcionais. Portanto, se houver surpresas orçamentais, nós queremos assumir o compromisso de que isso não vai afectar os rendimentos dos trabalhadores, dos pensionistas, que não haverá cortes nas pensões, nos salários, ou aumentos nos impostos sobre rendimentos do trabalho."

Enquanto o PS não se desviar desse rumo, BE e PCP garantem o seu apoio. Mas há outra “cola”, porventura mais eficaz. O acordo de esquerda é tão popular, e desejado, nas bases eleitorais de PCP e BE que qualquer movimento táctico de afastamento pode causar danos imprevisíveis. Nenhum dos partidos quer aparecer como “culpado” da queda do Governo numas futuras eleições antecipadas. Esta é a garantia mais próxima de um acordo “estável e duradouro”, tal como previu Cavaco Silva. Mesmo que os pontos de discórdia – política europeia, à cabeça – estejam assumidamente entre parêntesis.

Uma espécie de “núcleo duro” do governo de Costa começou a mostrar-se nestas negociações. O mais interventivo nas reuniões de negociação, pelo PS, foi o economista Mário Centeno. Afinal, foram coordenados por ele os cálculos do cenário macroeconómico que serviram de base ao programa com que o partido concorreu às eleições. E foi por ele que passaram os principais embates com os partidos de esquerda que exigiam uma mudança profunda na estratégia. Questões como o "estímulo económico" que Centeno pretendia provocar com a baixa na TSU e as questões laborais – de que não queria abdicar como "símbolo" de uma política de apoio à competitividade – acabaram por cair.

Além de Centeno, e do peso político de Pedro Nuno Santos, o PS escolheu para a sua equipa  Ricardo Mourinho Félix, economista do Banco de Portugal, deputado eleito por Setúbal. Da equipa faz parte também um assessor especial do grupo parlamentar, Hugo Mendes, sociólogo, investigador universitário, especialista em assunto sociais (é um dos autores do livro Estado Social: de Todos para Todos). Adalberto Campos Fernandes e Helena Freitas também passaram pela mesa das negociações.

O Bloco levou uma equipa de jovens deputados, liderada por Jorge Costa, vice-presidente da bancada parlamentar, e Mariana Mortágua. O PCP apostou em três membros da comissão política do comité central. O mais velho é Jorge Cordeiro, 59 anos. João Oliveira, líder parlamentar, e Vasco Cardoso, formado em Gestão, ainda não chegaram aos 40.

O resultado acabaria por ser assinado, à porta fechada, às 13h30 de terça-feira, dia 10, na Sala Tejo do Parlamento. Tem um nome complicado, a que falta um artigo pelo menos: “Posição conjunta sobre solução política”. Os líderes não se chegaram a cruzar todos na mesma sala.

Costa tem dito, para tranquilizar os socialistas, que é com pequenos passos que o acordo se vai construindo. Os três partidos vieram, de facto, de longe, como cantava José Mário Branco. O futuro dirá se vão para longe. Ou se houve aqui alguém que se enganou.