João Seixas: "As cidades são grandes espelhos de nós próprios"

Nas crónicas urbanas do investigador João Seixas, agora publicadas em livro, a cidade é o reflexo das realizações e aspirações colectivas e individuais.

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São crónicas urbanas. Lisboa está em evidência, mas é de uma forma mais vasta a ideia de cidade, como espelho de nós próprios, que está no centro de Em Todas as Ruas (Escritório editora, 2015), o livro que reúne as crónicas publicadas no PÚBLICO pelo investigador e professor João Seixas, com ilustrações de Eduardo Salavisa, João Catarino ou José Louro.

Com trabalho realizado na área da sociopolítica, da geografia e da economia das metrópoles, João Seixas tem uma visão integradora e democrática das cidades, olhando para elas de forma íntima ou quotidiana, mas também como lugar de desejo colectivo onde, nestes tempos de transições, é possível ir concebendo uma existência mais criativa, justa e humana.  

Fica a ideia, lendo as suas crónicas, que costuma andar muito a pé, pelo olhar de proximidade que evidencia e pela atenção aos pequenos sinais que a cidade transmite. É assim?

Sim. Ando cada vez mais a pé. Eu e a minha mulher tínhamos ambos carro e agora só temos um e habituámo-nos a andar a pé na cidade. Não é apenas uma preocupação ecológica, é também uma forma de usufruirmos mais da cidade. É quase como se tivesse voltado aos tempos da adolescência em que andava muito a pé. Dessa forma o reconhecimento da cidade é mais fácil e usufrui-se mais.

Num dos textos escreve sobre a rede de metro de Lisboa, quase como se a mesma fosse um reflexo do país – bonita, mas insuficiente, remediada, ainda não totalmente cosmopolita. É assim que vê também as cidades portuguesas?

Sim. As cidades são grandes espelhos de nós próprios, seja de uma forma individual ou colectiva, reflectindo as nossas realizações. Nesse texto o metro de Lisboa surge quase como uma metáfora do próprio país: uma rede de metro pequenina, semi-modernista, semi-cosmpolita, que foi crescendo lentamente, mas que ao mesmo tempo, apesar de pequena, cada uma das suas estações parece um palácio. Há a preocupação de haver transporte público colectivo, mas face à metrópole não deixa de ser reduzido comparativamente a outras cidades.

Nas cidades contemporâneas a questão da mobilidade como um direito é central, porque a cidade é como uma grande molécula relacional, é uma construção social que tem maior ou menor dinâmica conforme a capacidade relacional que existe dentro dela. E dela para outras cidades.

Nesse sentido o direito à mobilidade – de todas as escalas (seja andar de bicicleta, de skate ou andar pé, até  andar de TGV ou de avião) – é estrutural. Basta pensar que na nossa sociedade quando alguém se porta mal o que fazemos é tirar-lhe a mobilidade e, apesar desta era telemática e digital, continua a ser essencial.

Antes as cidades eram construídas em função das suas necessidades e funções (espaços comerciais, de sociabilidade ou mercados) e a forma como os transportes eram modelados eram-no em função dessas necessidades. Hoje é o inverso: é a forma como estruturamos a nossa mobilidade que vai definir as diferentes funções da cidade.

Na construção formal das crónicas há sempre um olhar de proximidade, quase afectuoso, mas também existe um tipo de reflexão mais distanciada, onde se vislumbra o investigador ou o professor. Essa dupla dimensão era consciente?

Sim. Vivemos uma época de profunda transformação e portanto quem estuda o mundo contemporâneo tem obrigação de trabalhar a vários níveis. Em primeiro lugar sou professor e investigador e ao escrever as crónicas queria colocar no espaço publico dimensões que considero pouco debatidas em Portugal referentes ao urbano e aos grandes desafios sobre a cidade contemporânea. Elementos de debate onde punha as minhas dúvidas. E isso foi um desafio, conciliar o factor emocional e científico, numa linguagem comum.

Essa ideia de que estamos a viver tempos convulsos está presente, mas mesmo quando aborda zonas conflituosas, há sempre uma visão integradora, como se a cidade, lugar por excelência do conflito, tivesse capacidade de superação.

Sim. Gosto de pensar nas crónicas como algo de estruturante. A cidade é sempre palco de conflitos, de feridas, de interesses distintos, mas a longo prazo também de progresso. A história da cidade, da humanidade e da urbanidade diz-nos que, apesar de tudo, tem havido progresso, mas estamos realmente perante novos desafios, nomeadamente a nível ecológico.

A forma como sentimos e materializamos o progresso tem de sofrer uma mudança profunda. E é nas cidades que estão esses grandes desafios. A salvação ecológica do planeta será feita sobretudo nas cidades. Não é tanto onde se produz o bem ecológico, mas onde se consome ou na forma como se consome. Prefiro uma mensagem de esperança, que por vezes pode ser até um pouco ingénua, ou utopista, mas prefiro assim. E isso é assumido.

No início de uma crónica escreve mesmo, de forma provocatória, que “a cidade é mais ecológica que o campo”.

Sim, no sentido em que o grande desafio ecológico é na urbe. É aí que está a maior parte da humanidade. É aí que o desafio da sustentabilidade do planeta será ganho ou não. A cidade tem de ser mais ecológica, a nível mental e cultural, que o campo.

Um dos assuntos sobre os quais reflecte muito é o da pressão turística nas cidades, em particular o caso de Lisboa. Depois de uma fase de deslumbramento, parece que passamos para o extremo oposto, com muita a gente a reagir negativamente ao que está a acontecer. Qual a sua avaliação?

Há um debate intenso a decorrer e é preciso avaliar certos aspectos: em primeiro lugar estamos apenas a falar do centro histórico de Lisboa. O impacto do turismo a nível espacial é acima de tudo aí, embora o coração da cidade seja importante, até pelo seu simbolismo. Mas o turismo não está a alterar Lisboa, está sim a alterar, e muito, o centro histórico.

O turismo é um direito humano. Nós gostamos de ser turistas em férias. Não temos autoridade para dizer aos outros para não o serem. Creio mesmo que o turismo vai continuar a ampliar-se pelo mundo fora. E Lisboa está nos principais mapas mentais globais – apesar de não ser Paris ou Londres – e como tal é provável que a procura pela cidade vá continuar.

Em termos económicos acredito que seja positivo, embora não tenha dados para avaliar o impacto na economia da cidade, ao nível do emprego que gera ou do tipo de reabilitação que propicia. Depois a nível mais urbano fico satisfeito que nos nossos espaços públicos haja mais turistas e formas de ver a cidade. Ou seja, uma cidade sem turismo não é concebível.

Dito isto é preciso saber que impactos essa vaga turística está a provocar e monitorizá-los, porque o centro histórico pode mudar bastante, sobretudo a nível habitacional, cada vez com menos casas para residência permanente e mais de curta duração. E isso transforma a vivência, a urbanidade e o comércio desses territórios. E nesse sentido parece-me que Lisboa ainda não percebeu totalmente os impactos que isso pode provocar, apesar de estar a despertar para eles.

Se o efeito do turismo se faz sentir sobretudo no centro histórico não deveria estar a ser equacionado desde já um planeamento que previsse que outras zonas pudessem ser também atractivas, no sentido da diversificação da oferta?

Sem dúvida. Da parte da câmara de Lisboa parece-me que existe essa preocupação. O vereador Manuel Salgado referiu que estava a ser feito um estudo sobre o impacto do turismo na cidade, mas não sei quais as variáveis – se o impacto do turismo na residência, na economia ou nos rendimentos familiares. O que sinto é que esta onda vai em crescendo. Espero que não sejamos submergidos e que a saibamos surfar.

Nos últimos anos, através de políticas públicas, ou por dinâmicas de iniciativa privada, Lisboa e Porto criaram novas centralidades, em movimentos de regeneração, cruzando urbanismo, cultura e economia, mas ainda assim parece pouco. Ou seja, existe uma riqueza que continua por explorar.

O título do meu livro tem vários sentidos. Em Todas as Ruas é uma evocação de um poema do Mário Cesariny, que remete para amor pela cidade, mas tem também a ver com o sentido da transição, com o habitar literalmente todas as ruas. Portugal é ainda país muito centralista, principalmente na nossa própria mente. Por exemplo, quando falamos em Lisboa pensamos na Baixa ou quando falamos a nível cultural pensamos em manifestações para uma elite centralista. Isso está muito enraizado. Por vezes esquecemo-nos de tudo o resto o que nos rodeia e que é imenso. Existe um enorme potencial à nossa volta, ainda pouco explorado, para podermos criar essas novas centralidades. Concordo que, a pouco e pouco, elas têm surgido, seja por iniciativa privada, ou por alguns apoios públicos, como foi o caso da Mouraria, embora também aí as associações de moradores ou empresariais tenham sido importantes. Em Alcântara, no Intendente também se tem tentado criar essas novas centralidades. Agora todo o resto da metrópole continua por explorar. Carnide, Benfica, Olivais, ou  mesmo saindo do município para Loures, Pinhal Novo ou Oeiras, enfim, tudo isso podem ser novas centralidades com uma vivencia fantástica e multiplicidade de funções possíveis. Portanto, é verdade, há potencial. Mas é preciso activá-lo.

 

 

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