À descoberta de Coimbra

Descobrir um território, que se faz rua a rua, casa a casa, museu a museu: caminhar pela primeira edição da Bienal de Coimbra, descobrindo, atrás de uma porta ou dentro de um espaço escondido, o que não esperava sequer vislumbrar.

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Matt Mullican, Sempre uma coisa a seguir à outra (colectiva) Jorge das Neves

Do Paço das Escolas à Câmara, do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha ao Círculo de Artes Plásticas, Coimbra é, por estes dias e até ao fim do mês, a capital portuguesa da arte contemporânea. Aqui decorre, um pouco por toda a cidade, uma multiplicidade de exposições e acontecimentos diversos relacionados com as artes visuais. Aqui se demonstra a existência de um empenhamento intenso em transformar esta primeira edição de uma bienal de arte contemporânea num marco inicial de algo que se repetirá muitas vezes. E que, a julgar pela qualidade média do que nos é dado ver, tem tudo para se tornar num acontecimento marcante a nível artístico, em Portugal e, porque não, internacionalmente.

Anozero’15 – Um lance de dados foi o nome escolhido pela organização. Com uma organização conjunta do CAPC – Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, da Universidade de Coimbra e da Câmara Municipal de Coimbra, assegurou desde logo a disponibilização dos espaços mais emblemáticos da cidade, desde a Biblioteca Joanina aos diversos edifícios universitários, do Museu Machado de Castro a outras instituições de natureza museológica dispersas pela cidade ou perto dela. Espera-se que no futuro este tipo de parcerias venha a crescer, englobando, por exemplo, o CAV (Centro de Artes Visuais) – onde de resto decorre uma interessantíssima exposição sobre a obra do australiano Sam Smith – e eventualmente mais espaços pertencentes ao riquíssimo património edificado de natureza religiosa, social ou industrial da região. Depois dos Encontros de Fotografia, que durante anos prestigiaram Coimbra como grande centro organizador de eventos de arte contemporânea em grande escala, talvez tenha agora chegado a vez da bienal na sua totalidade ocupar esse lugar.

Para além das exposições, que ocupam cerca de 23 espaços diferentes (o programa completo pode ser consultado no site da bienal, www.anozero-bienaldecoimbra.pt), há uma série de inciativas que têm estado a decorrer em dias específicos: um ciclo de conversas e mesas-redondas sobre o “estado da arte”, outro sobre coleccionismo, concertos, performances, e mesmo um ciclo de cinema da responsabilidade de Julião Sarmento que teve já lugar em meados deste mês. Do mesmo modo, algumas das exposições extravasam os limites atribuídos à prática artística contemporânea. É o caso de Risco interior: o desenho de mobiliário na Cidade Univesitária de Coimbra, em vários edifícios desse local, e Arquitectura na Universidade, no Colégio das Artes – Departamento de Arquitectura. De um modo geral, compreende-se que os três curadores da bienal – Carlos Antunes, Luís Quintais e Pedro Pousada – tentaram dar ao visitante uma panorâmica tão abrangente quanto possível do conceito que escolheram para esta edição primeira: uma reflexão sobre a classificação da Universidade de Coimbra, a Alta e a Sofia como Património Mundial da Humanidade, feita há cerca de dois anos pela UNESCO, que coloque em questão, sistematicamente, o território onde as obras se inscrevem.

Comecemos então pelo ex-libris da cidade, o Paço das Escolas, onde se situa a Biblioteca Joanina. Este edifício, hoje só aberto ao público com parcimónia e mediante pagamento, cristaliza aquilo que uma biblioteca não deve ser: um repositório não consultável de livros. Como lugar museificado, oferece-se ao visitante como um objecto artístico que abdicou da sua utilidade passada. Ou seja, tal como sucede em muitíssimos locais onde decorre a bienal, a passagem do tempo retirou ao lugar a utilidade prática, e dotou-o de uma utilidade artística. A Biblioteca Joanina, onde se mostra o filme de Marcel Broodthaers que dá o nome a esta edição da bienal – Um golpe de dados jamais abolirá o acaso-, juntamente com uma primeira edição do livro de Mallarmé que dá o nome à bienal, apenas guarda a imagem das suas antigas funções, deixando-nos a nós, visitantes, a tarefa de imaginar o conteúdo das centenas de volumes que enchem as suas paredes.

Broodthaers auto-representava-se no filme a escrever um texto que imediatamente era apagado pelo efeito da chuva torrencial que, ao mesmo tempo, lhe caía em cima. Dito de outra forma, este era também um trabalho sobre a impossibilidade de ler, tal como o que se passa no espaço em que o vemos. Mesmo o livro está tão longe do espectador e tão mal iluminado que é impossível decifrá-lo. Por outro lado, na cave do mesmo edifício a brasileira Adriana Varejão apresenta uma série de filmes sobre a temática da mestiçagem, tanto mais apropriada quanto sabemos nós que foi no tempo de D. João V, que dá o nome ao edifício, que a exploração colonial do Brasil alcançou o seu apogeu. Ainda no mesmo recinto, mas na Sala do Exame Privado, Cambeck de Binelde Hyrcan foca igualmente temas pós-coloniais.

A lei do menor esforço
Se estas três exposições estão particularmente bem adaptadas aos locais onde se encontram, o mesmo se pode dizer dos cinco artistas de prestígio inquestionável convidados pela bienal. Sarmento, que está no CAPC Círculo Sereia, apresenta Shadow pieces of Body Frames, selecção de obras quase todas inéditas entre as quais se encontra um vídeo projectado no próprio CAPC durante a década de 70. No Museu Machado de Castro, mais especificamente no Criptopórtico (uma estrutura subterrânea que suportava o forum romano que aqui existiu), Rui Chafes e Pedro Costa têm uma instalação exemplar sobre a luz e a sua ausência, ou a memória e a morte (Família), que confirma a particular adequação do trabalho em dupla destes artistas a espaços carregados de história. Na Câmara Municipal, Pedro Cabrita Reis utilizou os materiais de um restauro infeliz que desfez para realizar também uma excelente instalação (A casa de Coimbra), e Lawrence Weiner, na Biblioteca Geral, está representado com uma das suas peças características sobre a linguagem.

Dir-se-ia que, com o convite a estes artistas, a bienal assumiu uma postura sem risco e que garantiu à partida a atenção do público, que aliás respondia ao implícito convite nos dias que visitámos a bienal. O problema não reside aqui, mas sim na multiplicidade de pequenas exposições que, ao lado destas, se espalham por Coimbra. Há muitas obras menores de artistas razoáveis, o que nos leva a questionar as motivações que os levaram a participar na bienal. Porquê aceitar um convite se não se pretende estar bem representado? O que é que isto diz do artista? Pior, o que é que isto diz da ideia que o artista fez da bienal para a qual era convidado?

Há peças que nos deixam perplexos. Gabriela Albergaria, por exemplo, tem um conjunto de desenhos que não representam de todo a profundidade do seu trabalho. O mesmo se pode dizer das peças de Mónica Capucho, ou do desenho (que será realizado no espaço de um ano… quem o verá?) que Pedro Vaz vai fazer no Jardim Botânico. Uma obra pensada para o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, Tirado do sério, de João Pedro Trindade – um conjunto de panos pendurados na ruína da igreja – condensa esta lei do menor esforço que parece ter sido norma para alguns dos participantes: pura e simplesmente, se não nos tivessem avisado, nem perceberíamos que se tratava de arte.

Mas, felizmente, há outras boas surpresas, para além das já mencionadas. E mesmo em exposições que se adivinham feitas com orçamentos mais que limitados, há obras magníficas. As de Dalila Gonçalves, Jorge Santos e Teresa Braula Reis na sede do CAPC, por exemplo. A Instalação de Francisco Tropa e Alberto Carneiro no Museu Municipal de Coimbra. A frase de Gilberto Reis e Moirika Reker sobre o aqueduto S. Sebastião. Ou ainda, provavelmente a mais divertida de todas, um Museu que Francisco Tropa conseguiu construir – o projecto já existia há anos – numa praça suburbana: com as dimensões de um abrigo de autocarros, terá no futuro, um director, um curador e, quem sabe, até obras de arte.

A bienal, para além das fragilidades citadas, e que são normais num evento com ambições que está a começar, tem tudo para conseguir corrigi-las, melhorar a selecção de trabalhos apresentados, e até arriscar mais em jovens artistas e jovens curadores. Como está hoje, é também, para além da gratidão que a visita de boas exposições sempre nos provoca, a ocasião da descoberta de uma cidade que, no que à arte contemporânea toca, se esconde e muito. Esta descoberta do território, que se faz rua a rua, casa a casa, museu a museu, é a melhor resposta que poderia ter sido dada ao repto inicial que os curadores da bienal a si próprios se colocaram.

O território é assim pensado da melhor forma, através da experiência do corpo que nele caminha e que, atrás de uma porta ou dentro de um espaço escondido, descobre o que não esperava sequer vislumbrar. Citemos um último exemplo do que afirmamos: no Museu da Ciência, edifício neoclássico que esconde magníficos anfiteatros antigos e estantes repletas de animais embalsamados, testemunhos involuntários do modo de classificar cientificamente o mundo em tempos pré-modernos, descobrimos uma delicada cosmogonia através das esferas de vidro de Matt Mullican. Ou um Make my day Enola Gay de Miguel Palma, um avião de brincar de madeira acoplado ao seu cogumelo atómico, também de madeira - duas reflexões possíveis sobre os caminhos, justamente, que a ciência pode escolher tomar.

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