Aproximação a um lugar incerto

Sequências de aproximação a um mundo instável: uma unidade de internamento do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa. A respiração desse movimento, as possibilidades desse mundo: Talvez Deserto Talvez Universo

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No primeiro dia, apesar de autorização da direcção do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, Miguel Seabra Lopes sentiu que ninguém o queria ali, na Unidade de Internamento de Psiquiatria Forense. Ninguém queria ser filmado, ninguém dava autorização para aparecer... Era como se tivesse sido impingido.
Pôs-se a filmar o céu, as árvores, os corredores vazios... foi então que vieram os pedidos de cigarros, e foi pelos cigarros que a aproximação se deu entre o realizador e alguns dos internados. É que Miguel Seabra Lopes, que estava na instituição com a câmara, e Karen Akerman, que todos os dias recebia em casa o material em bruto para lhe dar estrutura, partiram para Talvez Deserto Talvez Universo “sem pesquisa” alguma.

“No primeiro dia entrei com a câmara. Não queria fazer o filme através de um preconceito.” Inicialmente havia um projecto de filme diferente, conta, com planos e cenas desenhados. Mas dispuseram-se a perder o controle — ou não tiveram alternativa. “Depois daqueles planos iniciais demonstrativos” — o céu, as árvores, os corredores vazios, como um acordar das coisas ou o acordar de um mundo —, “a câmara é roubada por aquele homem que pergunta se tenho moedas”. Como se houvesse já uma história anterior de empatia entre ambos e o filme fosse antes de tudo o mais um documento sobre uma respiração, a de uma proximidade, a de uma coabitação. É o primeiro puxão, entre outros, que vai manter a câmara no ritmo e no tempo dos internados, homens que em virtude de actos violentos foram considerados inimputáveis pelo tribunal, estando sujeitos a acompanhamento psiquiátrico, psicológico, médico, terapêutico e social em regime fechado. “Perdemos o controle...”

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Miguel Seabra Lopes e Karen Akerman. Há três anos a escrever projectos sem conseguir financiamento, e a filmar curtas que “são experiências fechadas”, estavam a precisar de serem confrontados pelo mundo, a precisar de ver rompida a claustrofobia DR

Talvez
Talvez por isso a palavra-chave em Talvez Deserto Talvez Universo seja “talvez”. Há uma canção de Pedro Abrunhosa, Eu sou o poder, relato de um pacto faustiano, que numa sequência intriga um dos pacientes desta unidade do Júlio de Matos. “O Diabo volta a perguntar/ ‘Que queres tu mais/ Que posso dar pr’a te saciar’/ ‘Talvez o deserto/ Talvez o universo/ E se eu fosse perverso/Talvez o medo que há no ar’”. Ele ouve-a, olha intensamente Miguel, sublinhando com o olhar a potência de sentidos. (Miguel ficou, ele próprio, intrigado pela postura contestária daquele homem que se chama Nelson.) Mas o que o filme parece ser levado a fazer, mais do que um Voando Sobre um Ninho de Cucos à portuguesa (o filme de Milos Forman, de 1975) ou mais do que uma leitura política sobre a claustrofobia, a clausura, sobre o que se joga no espaço concentracionário, é dar espaço a uma possibilidade de tempo, de narrativa, de um mundo... “talvez”.

“Há um perigo de o filme parecer uma crítica à instituição” — ou no mínimo decepcionar os responsáveis pela instituição que esperavam um documentário sobre o seu trabalho. “Queríamos criar um mundo com as pessoas que estão lá, os internados. Queríamos que se percebesse sempre quem era da instituição e quem não era. Tenho um problema grave com o sentir preconceito. Isso facilitou o filme. E não há nada que à partida as pessoas digam que me vá desmoralizar. Não pretendia retratar a doença mental. O filme é um conjunto de sequências de aproximação. Não queríamos criar um mundo encerrado, talvez por isso tivéssemos evitado a instituição. Porque uma instituição talvez queira criar para os seus doentes um lugar certo. Nós queríamos que eles vivessem num lugar incerto. Quando comecei a compreender foi quando parei de filmar: aí era eu que iria querer colocá-los num sítio onde eu quisesse.”

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Talvez Deserto Talvez Universo capta uma respiração. Como se contivesse ele próprio o registo cronológico e vital de um movimento. A aproximação e a coabitação duraram dez semanas e foram feitas sempre sob a amplitude das bipolaridades: nos pactos que ali se conseguem estabelecer, por exemplo, o que é um dado adquirido agora, mesmo em termos de rodagem, daqui a pouco já nada é; o que se julga saber sobre a consciência dos intervenientes também pode ser golpeado a cada esquina, quando o reconhecimento de uma câmara e do acto de filmar logo a seguir desagua num mundo alienado de complots.
Miguel Seabra Lopes chegava todos os dias a casa exausto com a experiência — Karen não podia ir, uma mulher não podia estar entre 32 homens naquela situação. “Uma pessoa fica desnorteada ali — mas nunca senti perigo físico, o perigo é envolvermo-nos. A noção do tempo... é muito parecido com o tempo das freiras que vivem em isolamento, é um tempo mais divino.” Confessa que aos fins-de-semana sentia saudades. “As minhas relações mais fortes com os internados nem sequer estão no filme” — pacientes que não quiseram ser filmados porque, tendo um regime de internato com algumas flexibilidades, não quiseram correr o risco de serem reconhecidos cá fora. E o espectador pode confessar também uma experiência de pacificação, um sentimento de consolo. Uma espécie de possibilidade... A mais longa conversa que Miguel estabelece com um dos internados, aquele que apunhalou o irmão no estômago — é uma das três entrevistas principais —, é não por acaso a última, um momento em tudo culminante. Miguel foi filmá-la, Miguel foi filmá-lo, para ele adormecer. “Aquela imagem final é como um muro. Não se consegue escalar, mas podemos escrever nele o que se quiser.” Talvez... O preto e branco foi logo uma decisão, “para que o olhar nunca se prendesse com as diferenças, com as diferenças nas roupas, por exemplo. Queríamos fazer uma montagem relacional, que abolisse ou diminuisse as diferenças.”
Miguel e Karen estavam a precisar desta experiência. Ele mais apaixonado “pelos detalhes e pelo bruto”, ela, montadora, com “uma relação muito forte com a estrutura” — “é aí que a gente se encontra” —, trabalham em casa. Os filmes continuam inevitavelmente a vida de ambos, “de forma insuportável”. Há três anos a escrever projectos sem conseguir financiamento, e a filmar curtas-metragens que “são experiências também fechadas”, estavam, por todas as razões e mais algumas, a “precisar de um choque”, a precisar de serem confrontados pelo mundo, a precisar de ver rompida a claustrofobia. “Havia a vontade de estar num lugar desconhecido. Vivemos num mundo muito isolado, sempre a falar de filmes com os amigos”. Vivem no Brasil, no Rio de Janeiro. Tiveram de mudar de vida para vir filmar em Lisboa.
“Acho que eles precisaram menos da minha visita ali do que eu estava a precisar de ir lá.”

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