Os três tiros que mudaram Israel

Amos Gitai e os seus actores fazem uma obra coral sobre a memória e o presente: como os tiros de Yigal Amir que mataram Yitzhak Rabin mudaram Israel.

Fotogaleria

Também é sintomático do estado de coisas por aqui no Lido: eis como, numa selecção (a da competição) em que a ficção clássica tem mostrado sinais de crise de modelo, com títulos agonizantes ou, mesmo sem declaração de rigor mortis, a conservarem-se in extremis no fio da vida, a ficção e a reconstituição histórica parecem em Rabin, the Last Day já não ser o que eram.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Também é sintomático do estado de coisas por aqui no Lido: eis como, numa selecção (a da competição) em que a ficção clássica tem mostrado sinais de crise de modelo, com títulos agonizantes ou, mesmo sem declaração de rigor mortis, a conservarem-se in extremis no fio da vida, a ficção e a reconstituição histórica parecem em Rabin, the Last Day já não ser o que eram.

É o filme a partir do último dia de vida do ex-primeiro-ministro israelita Yitzhak Rabin, assassinado por um estudante e activista de extrema-direita, Yigal Amir, a 4 de Novembro de 1995, quando abandonava uma manifestação de apoio aos acordos de Oslo para a paz entre israelitas e palestinianos: Yigal começou a sua manhã com orações, carregou a pistola e dirigiu-se ao local onde Rabin discursaria, esperando chegar perto dele e consumar o acto justiceiro que, na sua crença, se deve abater sobre “hereges” como Rabin, que queria obrigar israelitas a retirarem-se de alguns dos territórios ocupados.

Dizer que é um híbrido, Rabin, the Last Day, pode levar a pensar que o filme se constrói apenas com a simples soma de coisas diferentes. O que se é objectivamente verdade – imagens de arquivo do ex-primeiro-ministro nos comícios; o filme do assassinato, no parque de estacionamento daquela que hoje é a Praça Rabin em Telavive; reconstituição dos depoimentos da comissão de inquérito que investigou o que se passou naquele dia com actores a interpretarem “personagens” (embora Rabin seja apenas um vulto ou um corpo com sangue)... –, dito assim deixa escapar o que é decisivo e singular nele: a implicação de todos os materiais num objectivo comum, activar a memória de um acontecimento de há duas décadas, torná-la presente.

O que faz, por exemplo, com que as “interpretações” sejam menos a fixação ou individualização de personagens, como num docudrama, do que pontos para uma síntese sobre a sociedade israelita de hoje, tal como a vê Gitai. Os actores, qualquer que seja o “lado” dos acontecimentos em que tenham estado as suas “personagens”, integram um movimento coral que o filme convoca, participam num trabalho de memória como gesto cívico e, no melhor sentido da palavra, didáctico. E nunca se “interpreta” Rabin: seria injusto pedir a um actor que competisse com a sua “aura” (palavra de Gitai). Ele permanece o buraco negro do filme.

Gitai já o disse: fez Rabin, the Last Day não apenas como realizador, mas também como cidadão israelita – em nome disso, pediu aos jornalistas na conferência de imprensa que se levantassem em silêncio em memória das vítimas do conflito israelo-palestiniano. Não se trata de manter viva a memória de Rabin como gesto de saudade, diz... “Quando o presente parece tão negro, temos de olhar para trás, há 20 anos, quando houve um momento de esperança. Isso desapareceu” Para Gitai, as três balas disparadas por Yigal Amir mudaram Israel, um projecto de Estado que para o cineasta deve ser político, logo possibilitando e exigindo a negociação, e não religioso (que é a abertura ao “delírio” e à perda da noção da realidade).

“Rabin estava a tentar estabilizar a existência de Israel reconhecendo a existência do outro e não ignorando a existência do outro”, diz Gitai. Eis a diferença, segundo ele, entre esse tempo e hoje. No final do filme, digno de um daqueles momentos plúmbeos do cinema da conspiração americano dos anos 70, como um filme de Sidney Lumet ou de Alan Pakula, por exemplo, o juiz a quem coubera a investigação sobre o que correra mal a 4 de Novembro de 1995 (como é que, por exemplo, Yigal Amir chegara tão perto do primeiro-ministro, entre seguranças e polícias à paisana...), deambula numa rua de Telavive.

As paredes estão revestidas com cartazes que fazem a propaganda ao conservador Benjamin Netanyahu (hoje primeiro-ministro). O juiz fala para si próprio, há nas suas palavras um sentido de inutilidade em relação ao que estivera a fazer. Não eram já essas perguntas que interessavam, diz – Gitai, aliás, também não acredita em qualquer teoria da conspiração, este não é o seu "JFK”.

O que interessava perguntar era como é que as forças políticas da sociedade israelita se tinham aproveitado (se não mesmo “incitado”) do extremismo religioso – em imagens de arquivo vê-se Netanyahu em manifestações contra os acordos de Oslo em que há cartazes a pedir a morte de Rabin que surge figurado como um oficial nazi. Não tendo conseguido desestabilizar um líder eleito, permitiram que, outros, por outra forma, atingissem Rabin.

“Como espectador, os melhores filmes são aqueles que começam depois de terem acabado. Este filme, espero, deixará vestígios”, conclui o realizador.

Espera-se então por Heart of a Dog, ensaio poético, memória, documentário de Laurie Anderson para concluir sobre a vida e a morte da ficção na competição da 72.ª edição do Festival de Veneza.