A Meskalina de Karlon apura o olhar

O segundo álbum a solo de Karlon mostra o fundador dos Nigga Poison a mergulhar na memória e a olhar para dentro de si próprio. Viagem íntima e narração do presente. Não alucina, ilumina.

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Desde que iniciou o percurso a solo, Karlon tem escrito exclusivamente em crioulo (nos Nigga Poison, o crioulo misturava-se com o português). É a sua forma, explica, de canalizar de forma mais certeira, convincente, aquilo que tem transmitir DR

“O Nha Momentu é a minha biografia, a filosofia de um gajo que nasceu num gueto. Meskalina toca mais nas feridas”.

Nha Momentu foi o álbum que Karlon editou em 2013. Meskalina é aquele que agora nos oferece o rapper que conhecemos nos Nigga Poison, duo que partilhava com Praga, banda de destaque da segunda geração do hip hop português.

Meskalina toca nas feridas, diz-nos então Karlon. Toca nas feridas porque é álbum de um músico às voltas com as reflexões que lhe assaltam a cabeça quando se põe a observar o mundo, a ouvir quem o rodeia, a sonhar o futuro que tem necessariamente que ser melhor (mas o sonho teima em ser desmentido pela realidade que não muda).

Desde que iniciou o percurso a solo, tem escrito exclusivamente em crioulo (nos Nigga Poison, o crioulo misturava-se com o português). É a sua forma, explica, de canalizar de forma mais certeira, convincente, aquilo que tem transmitir. “Todas as línguas são iguais, todas podem ser moldadas em melodias”, começa por dizer na entrevista telefónica com o Ípsilon. “Falo-o desde pequeno e fica mais fácil para desabafar. Como passo a vida aqui no bairro estou sempre a falar crioulo e acaba por fluir mais. Mas quando estudava no Chapitô [em 1997, entrou nas suas escolas para estudar Artes e Ofícios do Espectáculo], escrevia mais em português”. Isto é importante para percebermos o rap de Karlon: ele é músico que quer que existam o mínimo de barreiras possíveis entre a ideia a passar e a forma de a expressar. Daí o crioulo e daí, por exemplo, que preze tanto o percurso independente que mantém neste momento. “Estou contente, estou feliz, estou livre”, diz, enquanto nos conta que a venda directa de discos, aliada às possibilidades abertas pelas plataformas online, lhe tem permitido “meter o pão na mesa”.

O crioulo, que é idioma do rap português desde os seus inícios, surge por outra razão. Telefonámos a Karlon para falar deste Meskalina de rima expressiva e de bom equilíbrio entre o hip hop como máquina rítmica agreste, activa e actuante (“Invisti na projectu” é um portento); como balanço alimentado por groove lânguido, jazzy (Deskulpan Mudjer, com SP Deville); como espaço de memória, naturalmente (a que leva James Brown a irromper por Ála di kredu; a que mergulha nas recordações do passado); como som convulsivo criado com cordas dramáticas e subgraves das profundezas (Siu na ódiu); ou como organismo alimentado por velhos espíritos dub.

A Europa cansa
Telefonámos a Karlon para falar de Meskalina, dizíamos, e ele revela que já tem novo álbum preparado. Será como que homenagem às suas raízes cabo-verdianas e à música do arquipélago. “É pesquisa e saudade”, explica. “Nasci cá, mas Cabo Verde são as origens. Sinto tudo aquilo”. Sente. Karlon imagina o tempo, num futuro indefinido, em que se mudará definitivamente para o país dos seus pais. “Conheces a sensação de andar descalço, só com uma t-shirt, sem roupa de marca e ninguém diz nada, ninguém comenta? Galinhas e porcos na rua, tudo normal. Sentimos aquela natureza. A minha mãe tem casa lá, em Praia Baixo [Ilha de Santiago], e o mar está a dois minutos. Pé no chão e estou na praia”. Uma curta pausa depois de dizer aquelas palavras, desabafa: “A Europa cansa. Um gajo está aqui porque já conhece os truques, já sabe como se mexer para viver o dia-a-dia”. Ele sabe o que é esse dia-a-dia. Conhece-o intimamente. Ele está cá, Portugal, Grande Lisboa, Miraflores. E é desse quotidiano que fala e que deixa registado em Meskalina.

O título do novo álbum surge de um diálogo do filme Matrix, em que uma das personagens refere que toma o alucinogénio usado pelos indígenas mexicanos porque as alucinações que induz lhe parecem mais reais que a realidade que o rodeia. “Dei-lhe o título nesse sentido: ‘Isto é real’. É como se estivesse mais perto de mim. Os xamãs do norte do México faziam os rituais para se encontrarem com os espíritos e comunicarem mais além. É como se entrasses dentro de ti mesmo e te questionasses: ‘Qual é o meu propósito neste momento? O que estou aqui a fazer?’”.

Em Meskalina, gravado com X-Acto e Beat Laden, com instrumentais de GhostKiller, 7th Wonder ou Núcleo, entre outros, Karlon questiona a religião, o hip hop de ontem e de hoje, o país que impede o sonho de uma vida digna, o lugar que o passado e a memória têm naquilo que somos. Um trabalho contínuo. “Quero lançar mais 40 álbuns até morrer. Tenho muito a dizer, muito a pesquisar, a ler, a aprender com os outros. Quando sairmos deste planeta, a única coisa que deixamos de património é a história. Construímos história para dar continuidade à humanidade, para ver um mundo melhor para além da guerra, de assassinatos, de injustiça”.

Quando olha para trás, para o crescimento no demolido bairro da Pedreira dos Húngaros, recorda um sítio onde nada faltava. “Vivíamos todos como família, a porta estava aberta e criávamo-nos todos como irmãos”. Recorda como ali descobriu o hip hop, quer o que começava a desabrochar por cá, através de Boss AC, Melo D, Zona Dread ou General, quer o que chegava dos Estados Unidos – “tinhas grupos como os Public Enemy a dizer Fight the power, isto numa altura em que havia muito racismo, em que Alcindo [Monteiro] morria no Bairro Alto [assassinado em 1995 por skinheads de extrema-direita], e sentíamos que eles também falavam por nós”. Recorda-se também de Primeiro G, pioneiro do hip hop crioulo, e da casa aberta que mantinha para que os jovens rappers pudessem aprimorar a sua arte. Recorda-se igualmente, ele que conta hoje 35 anos, ele que alinhou as primeiras rimas em 1991, do outro lado. “Quando era puto, vi ‘carochos’ mortos na rua. Ouvi tiros de caçadeira e os chumbos a cair em cima do nosso telhado. Para nós era normal”. Não pode ser normal agora. “Tenho um filho de sete anos e não quero que viva uma coisa dessas. Luto com todas as minhas forças e procuro o positivo”.

É por isso que a sua música e as suas palavras têm a força que têm. Porque ele não procura o positivo em modo “new age”, escondendo-se da realidade. Olha-a de frente, reflectindo sobre o que o rodeia, ouvindo quem tem por perto, denunciando, narrando. Rapando, em resumo. “Meskalina” não turva os sentidos. Apura o olhar. Tomemo-la sem moderação.

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