Nelson Évora: O melhor ainda está para vir

Foi obrigado a “esquecer-se” de todos os títulos que conquistou devido a lesões sucessivas que lhe colocaram a carreira em risco, mas acredita que o seu salto perfeito ainda vai acontecer. O Mundial de atletismo de Pequim é o próximo desafio.

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Nelson Évora durante um treino Daniel Rocha
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Nelson Évora acredita num bom resultado nos Mundiais Daniel Rocha
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João Ganço, treinador de Nelson Évora Daniel Rocha
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Nelson Évora a voar para a caixa de areia Daniel Rocha
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Nelson Évora tem treinado no Estádio Universitário, em Lisboa Daniel Rocha

“Nós aqui somos saltadores e técnicos de vento.” É uma manhã na pista secundária do Estádio Universitário de Lisboa. Nelson Évora cumpre o seu último treino antes de se mudar temporariamente para outro continente e vai fazendo constantes ajustamentos nos saltos devido ao vento errático que vai soprando. João Ganço, o treinador (e vizinho), ajuda nas correcções. A mochila faz de primeira marca, as sapatilhas de corrida fixam o local para o segundo salto e uma espécie de tapete aponta para o terceiro imediatamente antes da caixa de areia. Saltar, repetir. Saltar, repetir. Procura-se a perfeição, mas aqui Nelson Évora não precisa de ser perfeito. Só precisa de sentir que pode ser perfeito.

Nelson Évora será um dos portugueses com encontro marcado no Ninho de Pássaro, em Pequim, para os Mundiais de atletismo, que se realizam entre 22 e 30 de Agosto. Antes de aterrar na China, o saltador português ainda vai cumprir um estágio no Japão, afinar os últimos pormenores antes da prova de triplo-salto dos Mundiais, naquele que será um duplo regresso para Évora: a uns Mundiais, depois de ter falhado o evento de 2013, e a um estádio onde chegou ao topo em 2008 com a conquista da medalha de ouro nos Jogos Olímpicos.

Mas essa medalha, bem como o título de campeão mundial obtido em 2007, em Osaka, e todas as outras (muitas) conquistas não têm lugar no presente e no futuro de alguém que teve de reaprender muita coisa. “O mais importante foi deixar o ego de parte, esquecer os títulos. Isso é o mais importante para um atleta que já ganhou tudo. Sou mais um, igual aos outros. Tenho de entrar com um espírito de que ainda não ganhei nada. O principal problema é quando nos focamos naquilo que já fomos. Eu fui o melhor, ganhei tudo. Mas tenho de fazer ‘reset’ e fazer o que sei fazer melhor”, diz Évora ao PÚBLICO após o tal último treino em solo português.

Évora tem agora 31 anos, feitos a 26 de Abril. Tinha 23 quando foi campeão mundial em Berlim e 24 quando foi campeão olímpico na capital chinesa. Mas este Évora trintão está mais perto do Évora que se estreou nos Jogos Olímpicos em Atenas 2004 e nos Mundiais em Helsínquia 2005. “Tinha as capacidades para lá chegar, mas ainda estava a apalpar terreno. Agora toda a gente sabe quem é o Nelson Évora, na altura ninguém sabia quem eu era. Mas a ânsia que eu tinha era a mesma. Há dez anos estava muito parecido com o que estou agora. Quero ganhar, mas ainda não tenho todos os dados de que preciso.”

No início de 2010 Évora sofreu uma lesão na tíbia da perna direita, que obrigou a uma paragem de um ano. Ainda recuperou a tempo de participar nos Mundiais de 2011 em Daegu — foi quinto, a 15 centímetros do pódio —, mas teve uma recaída em 2012 e teve de fazer nova operação. Falhou os Jogos de Londres 2012, os Mundiais de 2013 em Moscovo e só voltou à competição nos Europeus de 2014, em Zurique, também depois de uma artroscopia ao joelho no início do ano — foi sexto na final, com uma marca ridícula para os seus padrões, 16,78m, quase um metro a menos que os 17,74m que tem de recorde pessoal.

Mas esta já era a fase em que tinha de saltar sem olhar para trás. Se os portugueses já se tinham esquecido que ele conseguia ganhar medalhas, Évora, conscientemente, também tinha de deixar de lado o seu estatuto de ex-campeão mundial e ex-campeão olímpico. Esse sexto lugar era o primeiro passo de um recomeço. Entre as disciplinas técnicas do atletismo, o triplo-salto é uma das mais “massacrantes” para o físico de um atleta, em que o impacto dos saltos pode ser de várias vezes o seu próprio peso. Para um atleta em recuperação, há sempre um risco de reincidência, mas o físico não cedeu e os saltos foram tendo cada vez mais centímetros.

Em Fevereiro de 2015, Évora já fazia 17,19m no Campeonato Nacional de Clubes que o próprio descrevia como o seu “recorde pós-lesão”. Um mês depois, nos Europeus de Pista Coberta, em Praga, os seus 17,21m seriam suficientes para o título continental. E o suficiente para o deixar com boas sensações. “Foi uma medalha com um sabor muito especial, mais do que ter sido de ouro. Se fosse prata ou bronze, seria igual, porque foi o confirmar da saída de um período muito negro da minha carreira. Foram muitas lesões, umas atrás das outras, havia muita dúvida por parte de toda a gente sobre se eu iria voltar. Quase ninguém acreditava que isso seria possível. As coisas aconteceram assim e fiquei felicíssimo”, diz Évora. E sensação de tempo perdido? “Nem tudo se perdeu. Talvez isso me vá dar mais uns anos de carreira.”

Em Pequim, Évora vai ter, como o próprio diz, a “esperança recarregada”. Super-recarregada, mesmo, depois de muitos meses a afinar a máquina. “A qualificação é de manhã, o que é sempre complicado, mas vou tentar que seja o mais rápido possível. Depois, na final, se lá chegar, irei tentar fazer o meu melhor, fazer os saltos mais longos da época e espero até fazer recordes pessoais. Se isso acontecer, se o meu corpo responder da melhor forma, acredito que posso sair de lá com um resultado muito bom.” Medalha? “Acredito que sim, é um dos meus principais objectivos, chegar lá e lutar por um lugar no pódio, embora saiba que é muito difícil, mas não impossível. Vou lutar com todas as minhas forças para sair de lá feliz.”

É este o Nelson Évora de 2015, aquele que acredita que o melhor ainda está para vir. E não podia ser de outra maneira porque este é um mundo em que há muita gente a saltar muito. Évora é apenas o nono melhor de 2015, com 17,24m feitos no meeting de Lausanne, na Liga Diamante. Há dois atletas que, este ano, já saltaram acima dos 18m, o cubano Pedro Pablo Pichardo (18,08m) e o norte-americano Christian Taylor (18,06m), e ambos parecem um degrau acima de todos os outros. “A concorrência é bastante dura, são atletas bastante fortes, mas não estou intimidado por nenhum deles. Já consegui fazer saltos longos em vários momentos da competição, é só acreditar em mim mesmo e não pensar se eles são melhores ou piores que eu, temos todos duas pernas, dois braços, uma cabeça, a pensar que quando entramos ali começa tudo do zero, quem sair de lá com o melhor salto, ganha.”

Os Mundiais de Pequim não serão, claro, um ponto final, mas um ponto de passagem. Depois, vêm os Jogos Olímpicos em 2016 no Rio de Janeiro. Mundial e Jogos em anos consecutivos, tal como aconteceu entre 2007 e 2008. “O período de paragem não será muito grande. Os Mundiais serão um bom teste para os Jogos, um momento para tirar dados importantes”, refere Évora, que espera regressar ao palco olímpico oito anos depois de se ter tornado no quarto campeão olímpico português depois de Carlos Lopes, Rosa Mota e Fernanda Ribeiro.

São visíveis as marcas na perna direita dos seus anos negros, mas as cicatrizes são apenas isso, marcas, testemunhos do passado, como as medalhas. O que interessa, diz Évora, é que “o pior já passou” e que o corpo foi aos limites nos últimos noves meses, sobreviveu e prosperou com o trabalho duro. A competição será um bónus. “Essa é a melhor fase, em que disfrutamos mais. Antes, talvez tivesse algum medo que houvesse alguma reincidência, que houvesse alguma dor que não estivesse prevista. Passando por isto, sentimos depois que somos capazes de qualquer coisa.”

Évora ainda pensa no seu salto perfeito, aquele em que salta para o infinito, como ele gosta de dizer. Ainda pensa em chegar aos 18 metros, uma fronteira que só cinco atletas conseguiram ultrapassar — continuam a valer como recorde do mundo os 18,29m de Jonathan Edwards, feitos a 7 de Agosto de 1995 em Gotemburgo. “Nas pernas já estão há algum tempo, mas é preciso senti-los na cabeça. Aí é um pouco mais complicado, mas tenho a certeza que esse momento chegará. Tenho de me soltar de todo o tipo de limites que eu possa definir na minha cabeça e deixar-me levar pelo meu corpo”, diz o triplista de herança cabo-verdiana que nasceu no Congo.

Fisicamente diz que até está melhor que quando estabeleceu as suas melhores marcas. Évora parece que voltou a confiar sem reservas no seu corpo. A primeira metade do salto perfeito está garantida. Falta a outra, a capacidade de alheamento, de não pensar no risco, de ter as pernas ao comando e não a cabeça. “É deixarmo-nos levar, saltarmos para o infinito sem olhar para trás e sem pensar no que irá acontecer. Ter a perfeita noção que aquilo é um risco — tudo o que ultrapassa o normal também tem o reverso da medalha — mas acreditar que nada de mal irá acontecer. É esse o momento, o perfeito equilíbrio que temos de encontrar.”

Corrida a acelerar, primeiro salto, segundo salto, terceiro salto e caixa de areia. São alguns segundos de alheamento quando toda a gente está a olhar. “Um bom salto é aquele em que, desde o primeiro até pisarmos a areia, não nos lembramos de nada. É porque correu tudo de forma espectacular. Quando pensamos, quando controlamos o nosso corpo, quer dizer que não demos o nosso melhor. Os melhores saltos da minha vida são aqueles que não tenho gravado na primeira pessoa, só os tenho gravado na minha mente porque os vi em vídeo. Daquilo que fiz, não me lembro absolutamente de nada.”

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