Antes de dar a cana na vez do peixe, aprendamos a pescar

Conceitos como “politizar” e “consciencializar” pressupõem que a massa siga um guia, que a “politiza e consciencializa” e não que cada uma das pessoas aprenda a fazer um caminho próprio com todos, de todos e para todos.

As razões mais profundas de um tipo de atavismo cultural em Portugal, que se tornaram quase telúricas e seu adn natural, remontam a, pelo menos, o decaimento pós-Descobertas, já ele sintoma de alguma coisa e não apenas causa.

Uma compreensão profunda e explicação acessível está magistralmente explicada, muito para além disso, na dissertação do Professor Doutor Mário Vieira de Carvalho na sua Aula de Jubilação: um texto incontornável a quem o assunto interesse que urge ser dado à estampa. Aqui, neste artigo, apenas olhamos de relance a nossa contemporaneidade e a arte em particular.

A nossa ‘massa crítica’ é quantitativamente exígua e qualitativamente ‘limitada’ aos seus próprios centros de interesse, ‘modismos’ e até fantasmas. Há, em nome de um confortável cepticismo (mesmo quando é genuíno ao nível do consciente), uma desmobilização da intelectualidade portuguesa ao nível da produção de pensamento, exercício crítico e até criatividade. Será porventura hoje mais difícil de o fazer do que no tempo da própria ditadura assumida. Porque nesta, sofisticada e oculta, é rápida, múltipla, complexa e paradoxal, a movimentação sociológica ao nível de conceitos e modelos; porque a circulação de informação acelerada, e sem triagem prévia da veracidade, impede a construção ponderada de uma qualquer teoria e, em sua consequência, da definição perdurável de objectivos e valores; porque a linguagem, nomeadamente no léxico, está corrompida ao nível da apropriação de termos de uma determinada ideologia por outra; porque a intelectualidade, em geral e em sentido lato, se ‘rendeu’ à visibilidade do imediato em troca da imersão no estudo; porque a capacidade de anulação das vozes discordantes é mais poderosa do que nunca, sem necessidade de “censura oficial”, prisões e outros métodos dos totalitarismos anteriores; porque as propostas ditas alternativas se integram neste sistema, que dizem não querer, mas prosseguem, limitando-se a jargões desencaixados de todo, reportando-se a 1917 ou 1968; porque o pensamento conservador está submerso na vitória de uma nova extrema-direita pragmática e tão ou mais unicista e sectária do que o “socialismo real” – e nele integrou os progressistas moderados e reformistas com propostas indiferenciáveis; porque quando há muitos peixes no mesmo aquário é quase impossível não confundir um peixe com guelras de um qualquer brinquedo insuflável parecido. Etc., etc., etc..

Todavia, pesem todas as críticas éticas que se possam – e em minha opinião se devam – fazer a esta abulia da intervenção dos intelectuais no plano das ideias e da partilha e integração delas na comunidade e na realidade, o problema carece de uma abordagem prévia. É urgente que a crítica intelectual se liberte de ‘cadáveres no armário’, mas sem perda da memória, ao contrário do que parece, a mais das vezes, suceder: vai o bebé fora e fica a água da banheira! A desconstrução do iceberg, a que todos pertencemos (em maior ou menor medida, mesmo quando algumas pedras dele se soltam, logo se derretendo nas águas), tornou-se uma prioridade. Sobretudo em termos de expressão artística e de formulação de pensamento crítico sobre a realidade. Não se trata de uma ‘elitização’ fechada da cultura, mas justamente da passagem da ‘massificação’ a uma consciência emancipada, sem a qual a liberdade é uma ida à boleia condicionada e não uma corrida própria. Sem tal emancipação, objectivamente e a prazo, a mudança pouco mais é do que a de dono, mesmo quando este à partida nem o fazia para o ser.

Fazer esta desconstrução de um pensamento maniqueísta proclamando-se dialéctico, quando o que importa é torna-lo dialógico é dolorosa, demorada e não vai ter resultados significativos no tempo de vida que reste aos que já passaram a barreira dos 30 ou 40. E tem de começar por ser ‘autoconsciente’ em si e para os outros. Mais do que “oferecer soluções” a que os demais se alienem, no sentido exacto do termo em Marx, há que denunciar em ‘aberto’, sem dar a resposta. Conceitos como “politizar” e “consciencializar” pressupõem que a massa siga um guia, que a “politiza e consciencializa” e não que cada uma das pessoas aprenda a fazer um caminho próprio com todos, de todos e para todos.

Este problema, de cristalização de ideias e práticas inoperantes e ‘inoperadas’, não é exclusivamente português. É europeu – e mais até –, mas agravadíssimo entre nós pela ausência de uma ‘massa crítica’ que o aceite considerar e que estimule sequer pensá-lo. Por isso exige coragem e determinação para seguir em solidão – há quem o faça, no plural da sua singularidade, mas é raro – até compreender que, afinal, se está acompanhado de milhões. Milhares de milhões que simplesmente ainda não provaram a possibilidade de conhecer para decidir por si sem preconceitos, medos ou crendices, sejam de que tipos forem e em que ventos venham. A “agitação” e as “barricadas” do imediato ficam para a “política” de partidos, sindicatos e outros. Não por ser coisa menor, nem maior, nem da qual, num plano concreto da luta cívica, os intelectuais “possam” escapar-se com os deveres solidários na “frente” em que acreditam. Mas, enquanto intelectuais, o seu papel é o de questionar, e questionando, aumentar – talvez devagar, mas solidamente – uma ‘massa crítica’ quantitativa e qualitativamente em processo de progressão mais ou menos continuada de hipotética base geométrica.

E se instituições há em que o tempo é completamente absorvido na mais básica resistência para a sobrevivência das próprias, mais à arte – como lugar de excepção no quotidiano e de criação – hão-de estar acometidas as premissas da inquietação em demanda da ‘autoconsciência emancipada’ de todos e de cada um. Não se trata de dar o peixe, nem de ensinar a pescar com a cana. Mas de algo muito mais além: temos, todos e de novo, de aprender a pescar o peixe com guelras, distinguindo-o do tal insuflável.

Encenador e Director Artístico de Dogma\12

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