O rio no centro de Lisboa

No domingo, na Revista 2 do PÚBLICO, foi publicada uma magnífica entrevista de Alexandra Prado Coelho com o arquitecto paisagista João Gomes da Silva, sobre a relação da cidade de Lisboa com o rio, com o título Lisboa já descobriu o Tejo?, na qual se discorre também sobre a relação entre as duas margens.

Diz João Gomes da Silva que quando se analisam os planos directores municipais das cidades que completam o estuário percebe-se que não existe articulação. Não há rede de comunicação de um lado para o outro, por ausência de conexão económica, de navegação cruzada e de incapacidade em fomentar construções culturais, tornando desejável aos de Lisboa irem ao Barreiro, Seixal, Almada ou Alcochete e vice-versa.

Ao ler a entrevista pensei na recente polémica à volta da designação Lisbon South Bay, para identificar os territórios da margem do Sul do Tejo, integrados no Arco Ribeirinho Sul (Barreiro, Seixal, Almada), na qual choveram críticas jocosas pela utilização do inglês, como é habitual na linguagem do marketing.

Independentemente do que se possa achar da designação – e é verdade que há alguma incapacidade em dar nomes às coisas na nossa língua – acabou por chocar-me também os que, à boleia dessa circunstância, arremessaram uma série de anátemas preconceituosos sobre a margem Sul, vista como mero dormitório, envelhecida, de gente cansada, revelando desconhecimento e passando ao lado daquilo que merecia ser também discutido. 

Na maior parte das críticas estava implícito que Seixal, Barreiro e Almada estavam apenas a travestir-se, mera operação de cosmética, sem qualquer mais-valia para oferecer. O paradoxo é que não é verdade. A forma como querem comunicar essas mais-valias pode ser um grande equívoco, mas elas existem realmente.

Estão lá na forma de espaços inexplorados, de património industrial com memória e possibilidades de reconversão, de zonas ribeirinhas charmosas (não é por acaso que imóveis da zona velha do Seixal têm sido adquiridos por estrangeiros que não olham para o local como subúrbio), na dinâmica cultural, no associativismo ou nas ideias de comunidade. E estão essencialmente nas pessoas e no que resiste à homogeneização das suas margens, naquela que é possivelmente a área com mais potencialidade de reconversão de toda a zona metropolitana.

Como reflecte João Gomes da Silva, uma das vias para que o turismo em Lisboa seja menos concentrado e padronizado, seria fomentar também o desejo de atravessar o rio. Como o arquitecto que é capaz de perceber as possibilidades de uma casa mesmo se para os leigos parece estar em ruínas, é preciso saber ver e identificar essa riqueza, seja gastronómica, urbanística ou cultural.

Mas ela está lá. Falta activá-la. Interligá-la. Estimulá-la. E saber comunicá-la. Não através de marketing manhoso, mas fazendo sobressair velhas ou novas realidades culturais. Nesse sentido, existe pelo menos um elemento positivo na ideia da Baía Sul, que é estarem três autarquias a pensar em conjunto.

Não apenas para tentarem promover a mudança nas suas autarquias, mas também, ou até essencialmente, em Lisboa.

Numa discussão suscitada através da minha página do Facebook, o meu amigo, arquitecto e realizador Carlos Gomes, para lá das críticas ao nome, foi um dos que perceberam o que estava realmente em jogo. Escreveu ele que “era um passo na direcção certa, a de olhar para a Área Metropolitana de Lisboa como uma unidade de congregação urbana, com o rio como o seu centro.” Ou seja, sendo o centro de Lisboa o próprio rio. A mobilidade como centro.

O desafio seria olhar para a margem Sul como o outro lado de Lisboa, o seu lado Sul, enriquecendo a cidade de diversidade e possibilidades. Na sua visão se existe cidade que pode ser ponte para um outro modelo de grande cidade é ainda Lisboa. E faz sentido. A única questão é como potenciar as características únicas desse território Sul de Lisboa, entre o industrial e o urbano, com o campo ainda no meio. “Um dia poderia ser todo esse anel, em torno do rio, o verdadeiro Centro de Lisboa”, diz ele.

É uma imagem feliz. Encarar o centro, não como algo estático, mas como o fluxo vital da grande cidade. Qualquer coisa que exigiria um entendimento entre todas as câmaras municipais no sentido de facilitar e incentivar a mobilidade entre os dois lados.

E exigiria que, de uma vez por todas, começássemos a encarar o rio não como limite, mas como ligação, contribuindo para que ele seja mais vivido, em todas as suas margens.

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