Em Carregosa sente-se a falta da menor romena que ajudava os vizinhos

Antes de ser levada para Ovar, a jovem romena que foi vítima de maus tratos, abusos sexuais e escravizada durante sete anos viveu cerca de um ano e meio na vila de Carregosa, em Oliveira de Azeméis. É aí que a conhecem melhor.

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Casa onde a menor morava, na vila de Carregosa, em Oliveira de Azeméis, antes de ser levada para Ovar Adriano Miranda

As histórias eram contadas a conta-gotas naquelas ruas de Carregosa, Oliveira de Azeméis, aos vizinhos e amigos que se habituaram a ver uma linda e alegre menina romena, de cabelos pretos compridos, morena, olhos escuros, de saia rodada até aos pés. A mãe era afinal madrasta, o irmão era marido e haverá uma bebé desse casamento. Roubava porque era obrigada, pedia porque não podia chegar a casa sem dinheiro. A menor romena, vendida duas vezes pela mãe, vítima de maus tratos, abusos sexuais e escravizada, e que segundo fonte da Polícia Judiciária foi mãe aos 15 anos de uma bebé que poderá estar na Roménia, já não passa naquelas ruas, mas foi ali que viveu cerca de ano e meio até ser institucionalizada numa casa-abrigo para vítimas de violência.

Na casa onde viveu até ao final do ano passado, resta a cadela Nina que a acompanhava para quase todo lado. Os vizinhos não querem os seus nomes nesta história, têm medo, mas querem dizer que sentem saudades da jovem que agora tem 17 anos. Perguntam em que casa está institucionalizada, querem visitá-la. O casal que a escravizou foi detido em Ovar (para onde se mudaram com a menor) e está em prisão preventiva, mas os investigadores acreditam que há cúmplices dos suspeitos, classificados como perigosos, que estarão a tentar descobrir o paradeiro da menor.

Muitos sabiam que não andava na escola, que não sabia ler, mas era esperta. Alguns sabiam que roubava nas lojas das redondezas, que escondia o que podia debaixo da saia rodada, poucos tinham conhecimento que as arranhadelas, pisaduras e nódoas negras que, de vez em quando, lhe marcavam o rosto eram da pancada que levava da madrasta, como chamam à mulher com quem vivia. A madrasta, de 36 anos, e o marido, de 37, casal de vendedores ambulantes, estão indiciados por tráfico de seres humanos, abuso sexual de criança, maus tratos e falsificação de documentos.

O filho deles -  a menor foi obrigada a casar pela lei cigana sendo também, por isso, também um dos alvos da investigação da PJ - está em local desconhecido. Também a mãe da menor, que estará na Roménia, deverá ser investigada pelas autoridades desse país na sequência de contactos com a polícia portuguesa.

As saudades não se escondem. A voz embarga. “Era tão querida. Perguntava-me se precisava de ajuda, ia buscar água, levava o lixo, se visse pessoas de idade na rua com sacas ia a correr ajudá-las”, conta a senhora a quem a menor, por vezes, pedia para ser sua mãe. “Perguntava-me se queria ser mãe dela e eu respondia que era sua amiga”. E como amiga seguiam-se confidências. Entre elas, que tinha sido mãe de uma menina antes de ir viver para Carregosa. “Contou-me que não podia ficar com a menina, que não tinha condições para a criar, e que tinha ido para a Roménia”. A história da filha bebé foi contada a outra pessoa, quase ao pé de casa, com uma versão diferente quanto ao paradeiro. “Disse-me que tinha sido mãe de uma menina que estava com uma irmã no Porto”.

No cemitério da vila, ajudava os mais velhos no que fosse preciso. Carregava baldes com água, limpava o lixo, tratava da cera e das flores das campas. Não pedia dinheiro, mas levava algumas moedas para casa de quem apreciava a boa vontade. A senhora a quem queria chamar mãe viu-lhe a cara arranhada e não escondeu o que se passava em casa. Lembra-se de palavra por palavra: “Passo a vida a 'limpiar' - dizia mesmo assim 'limpiar' –, eu tenho de fazer tudo, a minha madrasta só sabe beber cerveja e dormir e se não levar dinheiro apanho”. Pediu-lhe dinheiro uma única vez. Dinheiro emprestado. “Pediu-me para lhe emprestar 10 euros para o leite do irmão porque se chegasse a casa sem nada eles batiam-lhe”. 

No final do ano passado, o hematoma no olho da romena não passou despercebido quando entrou no café. A vizinha perguntou-lhe o que acontecera. “Era um hematoma feio, mesmo feio, perguntei-lhe o que se tinha passado e ela disse-me que tinha caído. Acabou por dizer-me que tinha sido a madrasta”. E daquele dia em que o marido, que muitos pensavam que era irmão, lhe deu um pontapé nas costas, no mesmo café, também não se esquece. Ela entrou no café sozinha, sentou-se a ver televisão, pediu um Sumol de laranja, como habitualmente. Ele entrou, mandou um pontapé na mesa, ela levantou-se e à saída ele deu-lhe um pontapé nas costas. “Abriu a porta com a cabeça, ainda ali está a amolgadela, e ele foi sempre a discutir com ela até casa”, conta quem viu o que se passou e que no dia seguinte soube que a agora adolescente tinha sido levada  e que o irmão afinal era marido. Nunca mais a viu

A história de violência contrastava com uma alegria contagiante que não passava despercebida nas ruas, nos cafés, no cemitério, no centro da vila, e até mesmo nas lojas onde todos sabiam que, por vezes, levava coisas sem pagar. Uns proibiram-na de entrar, outros diziam-lhe que se precisasse de alguma coisa que pedisse em vez de levar à socapa.

Esta não foi, porém, a primeira vez que foi vendida e escravizada. Quando a menor tinha 10 anos, foi comprada por outra família na Roménia que a levou para a Irlanda. Durante um ano foi obrigada a mendigar pelas ruas e também, segundo a PJ, forçada a manter uma “relação marital. Ao fim desse tempo, foi devolvida à mãe que a vendeu ao casal que a trouxe para Portugal.

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