A economia é um cão de estimação, feroz e mal comportado

Passamos a vida próximos dele, a alimentá-lo, a acarinhá-lo — ora com medo que nos morda, ora com vontade de nos aproximarmos ao ponto de, até, julgar que o compreendemos, na alegria e na fúria

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Mark Meyer/Reuters

A economia é um cão de estimação, só que feroz e mal comportado. Passamos a vida próximos dele, a alimentá-lo, a acarinhá-lo — ora com medo que nos morda, ora com vontade de nos aproximarmos ao ponto de, até, julgar que o compreendemos, na alegria e na fúria.

Porque não lhe demos educação e o deixámos crescer sem o ensinar enquanto cachorro, agora vemos ao nosso lado, ali no tapete da sala — sua propriedade, porque é dele tudo o que conhece —, algo que não reconhecemos e que não sabemos o que lhe fazer.

Gastamos dinheiro a tentar resolver o problema — com veterinários, com treinadores, com bruxos para esses que ainda vivem mentalmente na Idade Média — mas o problema persiste, e já nem conseguimos comprar comida para o cão, o grande problema da nossa vida, e para nós próprios.

Ficamos franzinos, chupados, abatidos. O cão uiva, tem chagas, cheira mal. Tiramos-lhe a comida que lhe resta, numa tentativa de o forçar à submissão, mas não resulta, e os dos vizinhos latem e rosnam. É pobre, mas ninguém avisou as suas cordas vocais.

Subitamente tocam-nos à campainha. Arrastamo-nos e aceitamos a proposta que nos oferecem: levam-nos o cão mal comportado e trazem-nos um novo, um cachorrinho adorável, bonito e dourado, e dizem-nos que jamais seríamos capazes de viver sem ele ou sem outro como ele. Pedem que não nos preocupemos com eles — o cão e seus benfeitores —, estão habituados a isto e vivem numa comunidade que trata destes e outros casos.

Nós acreditamos. Acreditamos porque é verdade e porque os vizinhos o confirmam. E com isso juramos não repetir os erros do passado e destruir o nosso cão com negligência — seja ela inconsciente ou teimosa. Levamo-lo a passear todos os dias, damos-lhe a melhor e mais cara comida que existe, trazemos gente lá a casa que o mima. O tempo vai passando, somos felizes com o nosso cão e quando nos perguntam por ele respondemos: “Bem, bem, este é manso, não é como os outros!”.

A vida abranda, o sol raia, bebemos whisky vintage antes de ir dormir, despedimo-nos do “part-time” escravizante. Se na rua lhe dão uma guloseima dizemos que sim. Já comeu a sua dose hoje mas, que se dane, estão a oferecer. Depois arranja-se uma coisa qualquer para o estômago, para os dentes. Se uiva, mandamo-lo calar, fechamos as portas, ignoramos os latidos.

O novo trabalho, que entretanto se arranjou, aperta. Não nos podemos dar ao luxo de sair da cama para o acalmar. Temos que cortar na empregada doméstica e o cão fica com amigas, amigos, familiares, conhecidos, alguém que tome responsabilidade por ele, que nós já não conseguimos. Quando voltamos a casa, damos-lhe mais uns doces — só desta vez que não faz mal, só às terças e quintas, ao fim-de-semana não, só durante a semana também não há-de fazer mal. O cão arrasta-se. Voltamos a não saber o que lhe fazer, voltamos a fitar a porta de entrada. Não queremos que a campainha soe. Não queremos que a campainha soe. Queremos que a campainha soe. A campainha soa. A porta abre sem que a abramos, e dela surgem vultos dos cães do passado, “poodles” e “terriers”, labradores e caniches, e caímos no chão, culpados, para espanto dos nossos benfeitores que nos estendem as mãos. As luzes apagam-se, o mundo estremece. As louças das paredes caem, quase nos esmagam. Levamos com alguns estilhaços dos vidros das janelas.

Na confusão a porta fecha-se, tão magicamente como se abriu, e ouvimos um tímido latido e um roçar querido na barriga das pernas.

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