O novo livro de Harper Lee ainda não foi publicado, mas já é um best-seller

Harper Lee escreveu dois livros sobre as relações raciais no Sul dos Estados Unidos: Mataram a Cotovia é o livro idealista, redentor. O novo Go Set a Watchman é o seu lado negro.

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Harper Lee em 2007 Mandel Ngan/AFP

O que é que se faz depois de publicar um livro que ganha o Pulitzer, é adaptado ao cinema e ganha imediata reputação como um dos grandes clássicos da literatura norte-americana?

Se se for Harper Lee, foge-se do mundo e não se publica mais. É por isso que a aparição de um novo romance da autora de Mataram a Cotovia, 55 anos depois, é um acontecimento. Novo, neste caso, quer dizer inédito: Go Set a Watchman foi escrito nos anos 1950, antes de Mataram a Cotovia. O livro retoma as mesmas personagens – Atticus Finch, o advogado viúvo que defende um negro falsamente acusado de ter violado uma mulher branca, e a sua filha pequena, Scout – cerca de 20 anos depois dos acontecimentos narrados em Mataram a Cotovia.

Só que Go Set a Watchman, que é publicado esta terça-feira nos Estados Unidos e no Reino Unido, foi escrito antes de Mataram a Cotovia. Depois de ler o manuscrito, o editor de Lee aconselhou-a a converter alguns dos flashbacks do livro num outro romance, centrado na infância de Scout. “Eu era uma escritora principiante, por isso obedeci”, explicou Harper Lee. Esse romance veio a ser Mataram a Cotovia, publicado em 1960.

Harper Lee nunca mais publicou desde o sucesso desse livro e as razões por trás dessa decisão sempre foram um mistério literário. E continuam a ser, porque o surgimento de Go Set a Watchman, um inédito descoberto em 2014 pela representante legal da escritora, Tonja B. Carter, num cofre bancário contendo os papéis de Lee, não oferece resposta. Quanto muito, levanta outras questões: por que é que Harper Lee não publicou outros livros, se já os tinha escrito? Normalmente, um escritor decide guardar textos na gaveta em vez de publicá-los quando julga que o que escreveu não atinge a qualidade ou a ambição desejada.

O entusiasmo gerado pela aparição inesperada de Go Set a Watchman rapidamente deu lugar a dúvidas sobre se Harper Lee, actualmente com 89 anos, terá autorizado a sua publicação. A escritora teve um AVC em 2007 que a deixou debilitada e vive numa residência assistida em Monroeville, a pequena cidade do Alabama onde nasceu. Este ano, depois de receber uma queixa anónima, a polícia do Alabama abriu uma investigação para apurar se Harper Lee – que tem dificuldades de visão e está praticamente surda – teria sido manipulada ou enganada relativamente à publicação de Watchman. Depois de falar com a escritora na residência assistida onde vive, os detectives concluíram que ela tinha dado o seu consentimento em publicar o livro.

A 30 de Junho, Harper Lee recebeu os seus exemplares das edições americana e britânica do livro num almoço privado em Monroeville, no restaurante que pertence à sua advogada Tonja B. Carter, que descobriu o manuscrito. Esperar pela chegada de Harper Lee ao restaurante foi como “aguardar que a noiva aparecesse”, descreveu ao New York Times o presidente e director da HarperCollins, Michael Morrison. Lee Sentell, o director do Departamento de Turismo do Alabama, que levou a escritora de volta à residência assistida, no final do almoço, disse que nunca na sua vida conduziu “com tanto cuidado”. Parece improvável que Harper Lee apareça em público para promover o seu livro.

Go Set a Watchman, que é já o best-seller número um na Amazon, mesmo antes de estar disponível, é o livro com mais pré-encomendas naquele site de vendas online desde o último volume da série Harry Potter, noticiou anteontem a BBC News. O primeiro capítulo do livro foi publicado nos sites do Wall Street Journal e do The Guardian.

De acordo com as críticas ao livro já avançadas no New York Times e no Wall Street Journal, Go Set a Watchman surpreende porque a personagem de Atticus Finch – o homem recto, bondoso que em Mataram a Cotovia desafia as convenções raciais dos anos 60 e que perdurou até hoje como um representante da boa consciência moral da América – reemerge como um racista grotesco. Em Watchman, a jovem Scout, que tem 20 e poucos anos e vive em Nova Iorque, regressa ao Alabama para visitar o pai septuagenário, Atticus Finch, que se encontra doente, e fica horrorizada com as opiniões racistas e intolerantes do homem que lhe ensinou tudo o que sabe sobre justiça e empatia. O homem que em tempos esteve num encontro do Klu Klux Klan e que diz coisas como: “Queres pretos às carradas nas nossas escolas, igrejas e teatros?”

O New York Times chama-lha “leitura perturbadora”; o Journal diz que é “um livro angustiante”, uma “refutação do idealismo luminoso” de Mataram a Cotovia. Tudo o que os leitores desse livro pensaram sobre Atticus Finch – “o homem perfeito”, como escreve o New York Times, que também nota que muita gente decidiu estudar direito e tornar-se advogado por causa dessa personagem literária – vai ser posto à prova em Watchman. “Esta é uma história sobre a queda de ídolos. O seu tema principal é a desilusão”, escreve o Wall Street Journal.

Watchman não deve ser lido como uma sequela, mas como um primeiro ensaio de Mataram a Cotovia. Como é que um romance com o pior retrato sobre as relações raciais na América da década de 50 desembocou num romance redentor associado ao movimento dos direitos civis é um assunto que manterá a especulação literária em torno de Harper Lee ocupada durante muito tempo.

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