Quem se lembra do menino que soprava estrelas?

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Houve um tempo em que, quando passávamos nas ruas à noite, desenhavam-se histórias no céu de Lisboa. Havia uma carruagem que andava (seria a do Brandy Constantino?), um fumo reconfortante que subia de uma chávena (era o Ovomaltine, para beber quente ou frio), havia canetas que desenhavam traços ondulantes, chamas que se acendiam (eram as do Gazcidla, “uma chama viva onde quer que viva”) e um homem de capa e espada (o Porto Borges Brande).

Não, não tenho uma boa memória, muito pelo contrário. Se consigo enumerar os “reclames luminosos” que enchiam os céus do Rossio, dos Restauradores, do Marquês de Pombal ou do Saldanha é graças a um blogue (cuja existência tem sido fundamental para estas crónicas), o Restos de Colecção. Foi aí que encontrei fotografias dessas publicidades, montadas no cimo dos edifícios, que estiveram na moda nas décadas de 1960 e 70.

Descobri depois, noutro blogue, o Estação Chronographica de Fernando Correia de Oliveira, que a moda já vinha de antes. O jornal Sempre Fixe de 1929 referia-se ao engenheiro José Carlos Santos como “o homem que inundou Lisboa de reclames luminosos”, sobretudo “na Baixa e imediações” — reclames que transformaram a cidade num “pirilampo que não voa”.

Queixava-se o autor do pequeno texto: “— Fumem isto, comam aquilo, bebam aquel’outro… Cerveja estrela! Automóveis Citröen! Relógios Omega! Pilular Pink! Remédios para os calos! O Diabo! Há-os de todos os tamanhos e feitios. Uns que jogam às escondidas, outros que piscam o olho, outros que choram charutos, outros que andam à roda e até os há que vão andando e largando a sua laracha.”

Concedo até que a coisa pudesse ser excessiva. Aliás, nos postais coloridos dos anos 60 que Fernando Correia de Oliveira reproduz, o Rossio parece uma feira popular. Duvido que, com tanta luz a piscar e a retorcer-se no ar, alguém ainda olhasse os edifícios, notasse o Teatro Nacional ou apreciasse as fontes. Talvez, a certa altura, tudo isto resultasse apenas numa cacofonia de luzes, das quais, entre lâminas de barbear, marcas de relógios, brandys e bolachas, era impossível de retirar qualquer sentido.

Depois, de dia, com as luzes apagadas, os anúncios tornavam-se apenas feios emaranhados de estruturas metálicas que não se moviam e não contavam histórias. Ficavam ali como aranhiços inúteis em cima dos prédios. 

Mesmo assim, tenho saudades de um “reclame luminoso” em particular. Procurei-o em vão pela Internet e não o encontrei. Julgo que ficava no Saldanha, no topo de um edifício que hoje já não existe, de frente para quem vinha da Av. Fontes Pereira de Melo. Eu passava por ali à noite, sentada no banco de trás de um carro, e ficava a olhar para o menino que soprava primeiro bolas e depois estrelas (ou seria ao contrário?).

Era — julgo — um anúncio às “massas alimentícias” da Nacional. Durante toda a noite ele repetia-se com o mesmo ritmo, começando sempre tudo de novo Mas eu só tinha alguns segundos para o ver. O meu jogo era esperar que o carro atravessasse a praça a uma velocidade suficientemente lenta para eu ver as bolas e as estrelas e a história toda até ao fim.

Nos últimos dias perguntei a várias pessoas se se lembravam, mas nenhuma delas parece ter guardado memória desse anúncio. Apagou-se.

Ou nunca existiu?

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