O Estado Islâmico “é a vanguarda” que outros extremistas estão a observar

J. M. Berger diz que não é “um académico típico”. Investigador do think tank Brookings Institution, começou por seguir o movimento jihadista norte-americano nas redes sociais. Estava “no lugar certo” para perceber e emergência do Estado Islâmico.

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Berger olha para a Síria e para o Iraque e vê “prenúncio de uma guerra regional”. Só depois, defende, poderá “haver uma solução para o Estado Islâmico” Falou ao PÚBLICO em Lisboa, onde veio a convite da editora para promover o livro que escreveu com a investigadora Jessica Stern.

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Berger olha para a Síria e para o Iraque e vê “prenúncio de uma guerra regional”. Só depois, defende, poderá “haver uma solução para o Estado Islâmico” Falou ao PÚBLICO em Lisboa, onde veio a convite da editora para promover o livro que escreveu com a investigadora Jessica Stern.

Quando os EUA invadiram o Iraque ajudaram a fortalecer um homem chamado Zarqawi. Parte desta história começa aqui, certo?
Sim, Zarqawi andava pelo movimento jihadista há alguns anos. Chegou ao Afeganistão mesmo no fim da guerra com os soviéticos e passou anos nas prisões da Jordânia por planear ataques terroristas. Era alguém respeitado, tinha aliados, mas não era um actor principal. Com a invasão, mudou as suas operações para o Iraque, com o objectivo de combater os norte-americanos. A sua organização teve altos e baixos. Eles tornaram-se uma força muito poderosa no conjunto da insurreição e foram responsáveis por muitos ataques. Mas ao mesmo tempo semearam o seu fim porque as tribos sunitas foram convencidas a juntar-se nas batalhas contra o grupo. Fizeram-no por estarem horrorizados com a violência indiscriminada de Zarqawi mas também porque o Governo iraquiano lhes fez promessas. Mas tudo isto se desfez quando as promessas não se concretizaram.

Em 2010, quando os americanos estavam prestes a sair, os xeques sunitas já se queixavam, diziam que os seus combatentes não estavam a ser pagos e não tinham sido integrados nas forças de segurança, como prometido.
E quando os americanos saíram, em 2011, foi ainda pior. O Governo tomou uma série de medidas que foram vistas como tendo como objectivo lançar uma perseguição aos sunitas. Foi mais do que não cumprirem o prometido.

A Administração Obama herdou o Iraque e decidiu que não queria envolver-se da mesma forma. Mas poderia ter sido feito alguma coisa para impedir o que aconteceu na Síria, onde os sucessores de Zarqawi ganharam espaço para se tornarem no actual Estado Islâmico?
Não tenho a certeza. Tenho muitos amigos que dizem que devíamos ter tido uma abordagem mais agressiva e assertiva na Síria. Mas a nossa capacidade de moldar os acontecimentos no Médio Oriente estava num ponto muito baixo. Sempre imaginámos que era maior do que na realidade era. As consequências do que fizemos no Iraque deixaram a nossa capacidade de intervir de forma positiva na região ainda em pior estado. As revoltas árabes representaram um profundo descontentamento em relação aos regimes no poder, mas nós não temos alternativas para apoiar. O erro na Líbia foi entrar para remover a estrutura de poder existente sem termos qualquer poder para ajudar a impor uma nova.

Estes vazios de poder são os ambientes em que os jihadistas crescem. Hoje, quando olhamos para a situação, é óbvio que nos questionemos. Como é que as coisas podiam ser ainda piores? Talvez este seja o pior cenário. O problema da coligação formada há um ano para bombardear o Estado Islâmico é que não há um futuro para a Síria com que concordem. Sem termos um objectivo não podemos derrotar o Estado Islâmico.

Mas sem intervir militarmente, como na Líbia, podia ter havido outro tipo de abordagens?
Como treinar e equipar grupos de combatentes, como fizemos com o Exército iraquiano? Tão bem que isso correu…

Como tentar trazer os iranianos para a mesa e convencê-los a deixar cair Bashar al-Assad, por exemplo.
Não tenho a certeza. O Irão participa de forma muito activa na desestabilização da situação, tem a ganhar com isso. É um actor muito manipulativo e há muita controvérsia nos EUA sobre que tipo de relação devemos ter com o Irão. A Administração Obama fez mais do que qualquer outra na tentativa de abrir portas. Eu não sei o que é que o Irão quer. Eles apoiam a Síria, mas ao mesmo tempo vemo-los a manobrar no Iraque de outras formas. Às vezes parece que estão a alimentar o problema, provavelmente porque se vêem como os vencedores últimos do que sobrar do Iraque.

Nós estamos envolvidos numa campanha militar que, em grande, parte, vai beneficiar o Irão. Estamos a dar cobertura às milícias xiitas no terreno. Penso que estamos a participar em algo que é o prenúncio de uma guerra regional e não vai haver uma solução para o Estado Islâmico antes de essa guerra acontecer.

Já temos o Iémen, em guerra civil, onde os vencedores previsíveis são jihadistas.
Sim, o Iémen está a tornar-se num cenário perfeito para uma guerra entre os sauditas e os iranianos, embora ainda não o seja exactamente.

A Turquia, que agora apoia os países árabes no Iémen, fez pouco para impedir a entrada de jihadistas na Síria. Porquê?
É muito difícil perceber a política turca, mas é óbvio que eles não fizeram tudo o que podiam para impedir o fluxo de combatentes estrangeiros para a Síria. A situação é tão complexa que é impossível prever como estará o Médio Oriente daqui a dez anos. E é isso que me deixa com muitas dúvidas em relação a este envolvimento militar dos EUA. Não vejo actores com mãos suficientemente limpas para que nós possamos decidir apoiá-los e que tenham, ao mesmo tempo, grandes probabilidades de sobreviver. Não sou um isolacionista mas não me agrada ver os EUA a agirem só por agir. E penso que é isso que estamos a fazer. Se olharmos para a Bósnia, por exemplo, há uma tendência na política dos EUA para responder em função das manchetes.

O mesmo aconteceu agora, quando a decapitação do jornalista James Foley aterrou nas televisões e nos jornais, em Agosto do ano passado.
Exacto. É um problema muito difícil. Eu sinto-me obrigado a fazer sugestões, a pensar em abordagens, e eu sou só um tipo com um livro... Imagino o que seja ser um chefe de Estado, a pressão é muito grande.

Parece que tudo começou a acontecer mais depressa nos últimos anos e a capacidade de anteciparmos o que se segue diminuiu.
Sim, houve um fracasso em antecipar o crescimento do Estado Islâmico. Eu tive a sorte de que parte da minha investigação envolve observar estes movimentos nas redes sociais. Eu estava a acompanhá-los desde muito cedo, não necessariamente por antecipar que se iam tornar tão poderosos, mas porque eles estavam a fazer coisas interessantes nas redes sociais. Eu estava num bom lugar. Eles estavam a aumentar a sua influência dentro do movimento jihadista, a promoverem a sua capacidade de atracção.

Este nível de recrutamento, tão global, teria sido possível noutra era? Tendemos a dizer que a Al-Qaeda não sabia fazê-lo, mas as ferramentas não estavam disponíveis.
Tipicamente, os jihadistas estão na vanguarda das ferramentas disponíveis. Foram lentos em relação às redes sociais porque tinham preocupações de segurança. Até 2011, o uso da Internet para doutrinação e recrutamento fazia-se muito em chats fechados e controlados. Se as conversas entrassem por um caminho que desagradasse a quem monitorizava os chats, essas pessoas eram expulsas. E isso empurrou os dissidentes para as redes sociais, porque precisam de um sítio novo para falar. Quando chegaram perceberam que tinham uma audiência muito maior. O ISIS chegou cedo a este mundo, abordou-o de uma forma sistemática, percebeu que podia ter feedback imediato, perceber como é que sua mensagem estava a passar.

Fazem-no em inglês e em árabe, completam essa estratégia com outro tipo de materiais, como a revista Dabiq, que parece uma newsletter de uma ONG.
Sim, eles puseram muito esforço em montar uma máquina de propaganda eficaz. A Al-Qaeda já tinha tido produções sofisticadas, com o seu grupo de media, mas com a desvantagem de estarem a ser perseguidos, de terem de mudar muitas vezes de sítio. O ISIS investiu muito e a sua produção mediática é formidável, é mais eficaz do que a de qualquer outro grupo jihadista na história.

E não parece ter sido assim tão difícil pôr isto em marcha.      
Não é. Mas ajuda muito controlar território. É preciso ter algum espaço seguro onde manter esta máquina a funcionar. O ISIS pode fazer isso em Raqqa [cidade síria que controla desde 2013, capital do autoproclamado califado]. Mas na verdade, a diferença entre o ISIS e a Al-Qaeda foi a decisão. Controlar território ajuda, mas é a decisão de que este investimento vai ser uma prioridade que faz a diferença. Acabei de medir a sua produção entre 24 Abril e 24 de Maio e eles publicaram mais de 250 peças de propaganda, isso é muito. Chega-se a muita gente quando se lançam 250 peças ao mundo.

Quanto mais se faz e quanto mais de promove usando as redes sociais de forma organizada mais se vai conseguir recrutar. O ISIS é o maior movimento jihadista na história moderna, mas também representa apenas uma fracção de 1% de todos os muçulmanos. O problema é que movimentos extremistas de todo o tipo podem alimentar-se desta estratégia. Antes das redes sociais, se alguém queria juntar-se a um movimento extremista tinha a vida muito mais complicada, havia muitos riscos envolvidos.

É um paradoxo assustador que aquilo que tornou as revoltas árabes possíveis sejam as mesmas ferramentas que alimentam estes movimentos.
Sim, a diferença entre os movimentos mainstream e os movimentos extremistas violentos é que as pessoas que aderem aos primeiros têm vidas para lá desses movimentos, outros interesses, não são obsessivos. O ISIS é um grupo apocalíptico, fanático, e as pessoas que se envolvem têm muito poucos interesses para lá do movimento e têm uma enorme tolerância à mensagem.

E eles oferecem um pacote completo, mensagens diferentes, sobre o combate, a vida no califado.
Sim, há muita variedade na sua produção mediática. Mas o volume conta muito, 90% do sucesso do ISIS é o volume, é a quantidade de propaganda que publicam. São sofisticados, mas a sua presença e eficácia deve-se à quantidade e à natureza repetitiva dos tweets que publicam. E uma área onde nós podíamos realmente competir é aqui, na produção de enormes quantidades de propaganda, se decidíssemos gastar e orientar recursos para isso.

Porque é que ainda não estamos a fazer isso ainda?
A Administração norte-americana não compreende muito bem as redes sociais.

Houve tentativas, o Departamento de Estado criou um canal num YouTube.
Sim, foi um bom começo, mas foi pouco, era um canal de YouTube mais meia dúzia de contas no Twitter contra 2000 apoiantes do ISIS cuja única função é publicar centenas de tweets por dia. Em parte isto explica-se com falta de conhecimento, mas também entra em jogo a natureza burocrática. Se um tweet, antes de ser publicado, tem de ser lido e aprovado por três pessoas diferentes, uma comissão que o vai discutir...

Como é que se demorou tanto tempo a perceber a força que este grupo podia ter? Eles estavam activos nas redes sociais e matavam sírios e iraquianos todos os dias. E de repente, há um ano, tomaram Mossul, proclamaram um califado, e o mundo acordou.
Nos EUA, penso que a comunidade académica não ajudou. Os académicos tradicionais tinham investido muito nos seus estudos sobre a Al-Qaeda e estavam presos a isso. Eu que não sou um académico típico não tinha muitas ideias feitas. Em Janeiro de 2014, o Presidente Obama ainda dizia que a Al-Qaeda eram os Lakers e o ISIS uma equipa de basquetebol de liceu com os uniformes dos Lakers.

Essa lentidão deu-lhes uma enorme vantagem. No Médio Oriente, antecipa uma guerra regional. Que outras consequências pode ter este sucesso do Estado Islâmico?
O ISIS é a vanguarda do que vamos ver acontecer. Com as redes sociais é mais fácil para as pessoas com crenças extremistas encontrarem iguais e coordenar as suas acções. Isso vê-se com os voluntários que vão da Europa para a Síria. Mas vamos ver o mesmo com mais grupos diferentes, essa é a próxima fase. Nos EUA, por exemplo, os supremacistas brancos estavam a perder força e agora estão de volta. Penso que vai haver um período de mudanças sociais intensas, em que as pessoas se vão organizar de acordo com as suas proximidades ideológicas, jihadistas, supremacistas, neonazis, vão usar estas ferramentas. Outros extremistas estão a observar o que o ISIS está a fazer. E mesmo se continuarem a ser marginais, vão conseguir ter muito mais impacto. Nos próximos anos temos de nos preparar para isto.