Carreirismos contrafeitos

Fazer anos é uma coisa trivial. Celebrar datas significativas é outra. Mas há datas e datas e há muito quem as force por razões comerciais. A propósito de aniversários, o poeta e pedagogo João de Deus (1830-1896) escreveu um poema (Dia de Anos) que muitos recordarão e que terminava assim: “[Fazer] anos, não caia nessa!/ Olhe que a gente começa/ Às vezes por brincadeira,/ Mas depois se se habitua,/ Já não tem vontade sua,/ E fá-los, queira ou não queira.” Pois. Sucede que nas artes, sobretudo nas artes do espectáculo e em particular na música, a insistência nos anos de carreira tornou-se nos dias que correm uma espécie de virose. É claro que nem toda a gente pode ou deve fugir à carreira, e há até quem, tendo Carreira no nome (como Tony, Mickael, David e Sara), ande sempre colado a ela. Mas a insistência com que a soma de anos de carreira é chamada a justificar discos, espectáculos e o que mais for, começa a ser quase patológica. Veja-se esta pequena síntese de frases extraídas de comunicados e cartazes emitidos nos últimos seis meses anunciando artistas dos mais variados géneros musicais (fado, rock, clássica, jazz, popular, tradicional, etc.): “a comemorar 50 anos de carreira”; “apresenta o seu espectáculo de 50 anos de carreira”; “celebra 40 anos de carreira”; “comemora 40 anos de carreira”; “recital comemorativo dos 40 anos de carreira”; “para comemorar os 40 anos de carreira”; “a festa de comemoração ao vivo dos 35 anos de carreira”; “com mais de três décadas de carreira”; “em mais de 30 anos de carreira”; “assinala 30 anos de carreira”; “inicia as celebrações de 20 anos de carreira”; “tem quase 20 anos de carreira”; “completa 15 anos de carreira”; “ao longo dos seus 13 anos de carreira”; “recorda os maiores sucessos da sua carreira”; “uma síntese da carreira”. Etc. A ordem decrescente (dos 50 aos 13) é propositada. Talvez um dia vejamos esta frase: “Tininho celebra hoje na agremiação os seus seis meses de intensa e profícua carreira.” Cantará, claro, os seus “maiores êxitos”. Será só isto que as editoras e promotoras vêem nos seus artistas? Será que, no isco das “celebrações” e dos “êxitos”, contam trazer público que não acorre às novidades a não ser quando estas completam 30 anos?

Comercialmente, percebe-se. Quem é que gosta de faltar a celebrações? Quem é que, convidado para uma festa de anos, recusa o convite? Fazendo as contas à magra compra de discos e à falta de poder de atracção para o que de novo vai surgindo, aposta-se no passado, mumificando-se nomes que não mereciam tal tratamento. Neste contexto, as recentes declarações ao PÚBLICO de Maria Bethânia (sim, completa este ano 50 anos de carreira, já se sabe) são uma lufada de ar fresco na atmosfera de mausoléu que rodeia os artistas veteranos. “É um show hoje, sou eu hoje; como eu vejo, como eu sinto, não só o passado mas como eu me sinto agora e como penso o futuro, como eu o desejo. E com muitas canções inéditas, muitas coisas novas, lindamente criadas. Não é nada retrospectivo, nada! Não gosto de parar. Não suporto essa coisa que me aprisiona. Eu corro!” Ouviram? Que tal aprenderem a valorizar o novo, mesmo em quem já gravou dezenas de discos? Que tal uma estratégia para levar mais gente a ouvir aquilo que é inédito (a chamada estreia) em lugar de, pela enésima vez, exigirem ao vivo aquilo que repousa em discos já gastos? Que tal o futuro em lugar do passado, certamente rentável mas pouco estimulante em termos criativos?

Nesta algaraviada numérica dos muitos “X anos de carreira”, a Sociedade Portuguesa de Autores faz 90 anos (não de carreira, é bom de ver, mas de existência). Publicou, a propósito um volumoso livro com 100 depoimentos sobre Isto de Ser Autor (é o título e o mote). Uma curiosidade: só seis escreveram segundo o novo acordo ortográfico (a SPA não o aplica, mas aqui era facultativo). Os outros 94 viraram-lhe as costas. Quererão tirar as devidas ilações, senhores? Ou fechar os olhos?

E, já que é de carreiras que aqui se fala, fiquemos com o sempre actual Carreirismo de Mário-Henrique Leiria: “Após ter surripiado por três vezes a compota da despensa, seu pai admoestou-o. Depois de ter roubado a caixa do senhor Esteves da mercearia da esquina, seu pai pô-lo na rua. Voltou passados vinte e dois anos, com chofer fardado. Era Director Geral das Polícias. Seu pai teve o enfarte.”

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