Destruir as imagens

A iconoclastia de Alexandre Estrela é um gesto de abertura do espaço vital para que possamos pensar

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O gesto de provocação de Alexandre Estrela quanto à suposta neutralidade das imagens questiona o que pode a fotografia

O trabalho de Alexandre Estrela (Lisboa, 1971) caracteriza-se por uma intensa exploração de imagens — imagens digitais, em vídeo — produzidas pelo artistas ou encontradas por ele mas feitas por outros. Não se trata de uma obra guiada pelo fascínio das possibilidades da tecnologia, mas importa a este artista a maneira como os meios tecnológicos visuais acrescentam camadas sensíveis e de sentido às imagens que inundam o nosso mundo. Ou seja, não interessam o vídeo ou a imagem digital e as suas inúmeras possibilidades analíticas, mas o modo como com esses meios se fazem, constroem e criam novas possibilidades de experiência e, claro, de sentido. Em vez de uma antropologia das imagens, um questionamento, rigoroso, acerca do que pode e como pode uma imagem.

Esta nova exposição na Galeria Pedro Alfacinha, em Lisboa, é, de um certo ponto de vista, uma provocação — porque acontece numa galeria de fotografia e os trabalhos apresentados (um conjunto de serigrafias e um vídeo projectado numa ruína urbana exterior) têm no seu centro um mecanismo de destruição das imagens enquanto reprodução do mundo e da vida (a concepção naturalizada), como se elas fossem um intermediário transparente (sem expressão) que mostra tal-qual tudo quanto há e, como é a nossa crença habitual, pudessem ser prova material dos factos do mundo. Sendo que esta leitura das imagens enquanto coisas neutras é, em grande medida, da responsabilidade da fotografia, que aparentou ser uma visão factual — sem arte ou subjectividade — do real. E a esta concepção Estrela contrapõe trabalhos que vivem nos limites da visibilidade, coisas instáveis que impedem a cristalização e a reificação. Ou seja: a sua provocação tem a natureza de uma perturbação dos protocolos e das expectativas habituais que rodeiam a percepção das imagens.

Mas há um outro nível de leitura desta exposição, o qual se localiza numa intensa exploração da relação entre as coisas do mundo, as suas imagens e os dispositivos da sua reprodução e/ou difusão. E esta relação acontece porque tanto as serigrafias como o vídeo são construídos a partir de livros (um de fotografias sobre um jardim e outro de desenhos sobre a vida dos insectos, entre outros elementos) que, independentemente da sua natureza específica e dos seus referentes concretos, funcionam como uma espécie de paradigma de visão não-artística, não-subjectiva ou poética sobre o mundo. As imagens de que Estrela se apropria, e que reproduz e difunde, surgem indirectamente, através de uma cópia feita numa máquina copiadora. O resultado são imagens vermelhas, mais próximas de uma ideia de desenho esquemático do que de qualquer ideal de reprodução. E são estas cópias que são filmadas, serigrafadas, transformadas e, claro, recriadas. Não interessa saber, detalhada e totalmente, o processo (sublinhe-se estar em causa uma espécie de cadeia reprodutiva: o livro reproduz o mundo, a copiadora reproduz a reprodução do livro, a serigrafia e o vídeo reproduzem a reprodução da reprodução, etc.), mas darmo-nos conta de se tratarem de trabalhos destinados a abalar qualquer ideia de nitidez. São imagens genéricas quase esquemáticas, que chegam ao mundo não através da sua semelhança com qualquer facto ou objecto, mas da experiência subjectiva que provocam.

Esta apresentação de Alexandre Estrela não tenta “arrumar” Vida y Costumbres de Alexander numa espécie de discurso fechado e auto-centrado numa vertigem sobre si mesmo que caracteriza tanta “arte pela arte”, mas mostra que a destruição (a que também podíamos chamar diluição) das imagens feita por este artista tem a natureza de um gesto de abertura do espaço vital para poder pensar. Uma destruição dos clichés visuais e com eles das nossas expectativas sobre a visualidade do mundo, mas uma destruição motivada não pelo simples gosto destrutivo, mas pela necessidade de espaço para respirar, pensar e, claro, para poder ver.

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