Esta é a Ciência a que a FCT disse não

Irina Castro deverá partir para o México em breve. Rita Ávila Cachado pondera desistir da vida de investigadora. Número de bolsas concedidas pela FCT a investigadores de Ciências Sociais está em queda. Evento "Há Ciência para além da FCT?" lança a pergunta: o que está Portugal a perder?

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Irina Castro está quase de malas feitas para o México DR

Rita Ávila Cachado já definiu uma data. Se até Dezembro deste ano não conseguir uma bolsa que lhe permita continuar o trabalho de investigação que faz na área de habitação há já 15 anos, vai desistir da Ciência e procurar outra alternativa. Irina Castro está quase de malas feitas. Depois de duas recusas de financiamento por parte da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) apresentou o mesmo projecto a um programa doutoral no México e, depois de um longo processo, está já na fase final de selecção. É da “conjuntura assassina” da Ciência em Portugal que leva à recusa destes e outros projectos que se vai falar esta quarta-feira, dia 20: na mostra “Há Ciência além da FCT?” apresentam-se projectos que não chegaram a ver a luz do dia, num evento que é simultaneamente uma acção de “resgate” e “denúncia”.

Nos dois primeiros anos de doutoramento, Irina conciliou o estudo com um "estágio profissional" no Centro de Estudos Sociais, na Universidade de Coimbra, e a "solidariedade de colegas". Só assim foi possível suportar os gastos e não desistir. Na primeira candidatura que fez à FCT, em 2013, sabia que dificilmente teria financiamento. “Foi o primeiro ano dos grandes cortes.” No ano seguinte, refez o projecto para a área de Sociologia. Teve uma avaliação de 5 em 5 no que ao projecto diz respeito, mas como candidata conseguiu apenas 2,5. “Como nota final tive 3,75, o que daria bolsa há uns anos. Mas a linha de corte agora é de 4,55. É um jogo muito elevado. Feito para excluir até projectos considerados excelentes.”

Os critérios de avaliação, diz a jovem de 29 anos, são “incompreensíveis”. “Não conheço ninguém que os consiga explicar. Procuram, por exemplo, pessoas com experiência científica dificilmente alcançável tendo em conta que se concorre a doutoramento depois de mestrado. Pessoas com livros publicados em editoras internacionais. É quase como pedir um estagiário com cinco anos de experiência.”

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A antropóloga Rita Ávila Cachado pondera abandonar a Ciência DR

Quando recebeu o segundo “não” da FCT, Irina fez um post no Facebook a lamentar o resultado e recebeu uma mensagem de alento: “Um colega mexicano falou-me do programa doutoral deles. Falei com um professor que se mostrou muito interessado na minha investigação. O processo de avaliação é muito diferente do da FCT. Já fiz testes de línguas, exames. É um processo longo, mas pelo menos não se baseia em papéis. Tenho-me sentido mais valorizada.”

A sensação de desvalorização, e consequente insegurança, é também bem conhecida por Rita Ávila Cachado. O financiamento para o seu “dicionário de terminologia da habitação informal” foi recusado três vezes. Duas pela FCT e outra para uma bolsa de pós-doutoramento. “Houve momentos em que me senti insegura. Numa das avaliações, um dos revisores da FCT dizia bem, o outro não. Mas levei o projecto a uma conferência e a diversos centros de investigação e o retorno que tive era bastante bom”, contou ao P3.

O projecto da antropóloga de 39 anos queria investigar a habitação informal de forma transversal, inicialmente entre países de expressão portuguesa e mais tarde alargando-o a outras realidades. Temas “negligenciados” que têm uma “relação directa com a pobreza e com contextos de crise”. “Muita gente vinha fazer-me perguntas sobre o meu projecto para abordar questões de habitação social. Havia muito para fazer.” A FCT achou que não e a investigação foi parar à gaveta: “Desse projecto já desisti”, comunica.

É para denunciar estes casos que as duas investigadoras vão estar no evento “Há Ciência para além da FCT?”, em Lisboa (9 – 20h, na Casa da Achada), que vai contar com 12 apresentações de projectos recusados, a presença de algumas associações e um debate final (ver programa). "[Vamos] reflectir alterações profundas que os cortes dos últimos anos estão a provocar no presente e no futuro da investigação e pensar sobre as formas de reverter este processo de desinvestimento", explicou Paula Godinho, docente no departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e membro de uma das associações organizadoras do evento. “Vai ser interessante. São momentos de construção, onde podemos discutir aquilo a que dedicamos anos de vida. Mas também de denúncia. É fundamental denunciar”, diz Irina Castro. Rita Cachado concorda: “Com um discurso de empreendedorismo e excelência, a FCT está a deitar fora pessoas importantes. Os centros correm o risco de ficar sem investigação e a pirâmide só com aquilo que eles consideram o topo não é sustentável. Um dia vem abaixo.”

Número de bolsas em queda

O número de bolsas concedidas pela FCT a investigadores de Ciências Sociais está em queda desde 2007, ano em que foram aprovadas 479. Segundo dados da própria FCT, em 2012, esse número era apenas de 206, o mais baixo desde 2003. 

A precariedade nas áreas sociais não é um cenário estranho para Rita Ávila Cachado. Quando acabou o curso de Antropologia, em 1999, “já não havia saídas profissionais”. “Trabalhei em livrarias, pedi estágios em câmaras municipais, fiz um estágio não remunerado durante nove meses”, recorda. Que a realidade só tenha piorado nos últimos 15 anos é que é complicado aceitar. Como se sobrevive quando se quer dedicar a vida à Ciência? “No primeiro semestre deste ano dei aulas. Recebia 500 euros por mês e é disso que estou a viver até agora. Mas o prazo está a terminar.”

Com dois enteados, a solução emigração não pode ser sequer equacionada. A de desistir da investigação, sim. Para já, a antropóloga está a “concorrer ao que há”. Mas a data está definida: “Já combinei com o meu namorado que se até Dezembro não aparecer nada irei procurar uma alternativa. Seja ela qual for.” Rita não quer deixar-se cair em depressões. Acredita que vai desenrascar-se sempre. Mas não esconde uma certa tristeza. “Uma pessoa investe na investigação e desistir custa. Depois há os pais. A geração deles tinha esperança. Achava que os filhos iam ter mais. A minha irmã esteve desempregada dois anos. E verem agora a filha doutorada vir por ali abaixo... É pesado. Sobretudo porque também eles perderam metade do salário, viram a renda aumentar e nem têm como nos ajudar.”

É também por falta de opções que Irina Castro está prestes a “abdicar da rebeldia de querer ficar em Portugal”. Com um percurso académico atípico, que se iniciou com uma licenciatura em Ecologia Aplicada e um mestrado em Engenharia do Ambiente e se direccionou depois para a área social, a socióloga não admite ainda desistir do sonho da Ciência. No doutoramento que iniciou, queria investigar questões ligadas às sementes transgénicas e, através das práticas dos cientistas que lidam com estes organismos, estudar os casos e as controvérsias deste tema. “Porque é que há cientistas que dizem que faz bem e outros que dizem que faz mal? Quais são os métodos usados por cada um?”

As respostas serão, provavelmente, desenhadas noutro continente. “Estou à espera do resultado final da bolsa para ir para o México. Ter de deixar a minha casa e os meus pais é uma coisa que não me deixa propriamente feliz. Sinto-me mais um cérebro em fuga.”

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