Não, eu não vou aderir ao Acordo Ortográfico

Vá lá, agora a sério, o que acontece se continuarmos a escrever segundo a ortografia anterior ao acordo?

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Ricardo Xavier Antunes

Hoje li nos jornais, em grandes parangonas: O acordo ortográfico de Mil Novecentos e Noventa passa a ser obrigatório em Portugal a partir de Treze de Maio (de Dois Mil e Quinze). Resultado: ainda bem que eu não estou em Portugal! Senão habilitava-me já a uma, ou mais valentes pauladas por cada erro dado. Ou, ainda pior: a pildra, a choldra, a prisão, por me recusar a escrever de acordo com as normas vigentes. Vá lá, agora a sério, o que acontece se continuarmos a escrever segundo a ortografia anterior ao acordo? Na prática, não há qualquer tipo de sanção legal para quem não cumpra as determinações do novo Acordo Ortográfico, isto é, se um falante de língua portuguesa continuar a escrever segundo a ortografia anterior, não sofrerá qualquer pena legal. No entanto, profissionalmente e socialmente, poderá haver consequências, uma vez que, findo o período de transição, as antigas grafias passarão a constituir erros ortográficos. É disso exemplo o contexto escolar, no qual o não cumprimento das regras ortográficas terá certamente impacto na avaliação dos alunos.

Baril! Pessoal, ouviram isto? Estamos safos! Podemos continuar a escrever como bem nos apetece, mal ou bem, com vontade ou nem por isso, grandes testamentos ou apenas uma rubrica, sobre a guerra e sobre o amor, sobre as histórias da vida e sobre quem saiu vencedor, mas sempre, sempre, como sempre nos ensinaram. Sempre, sempre, como sempre nos bateram. A mim foi a Dona Clarisse. Se não fosse a Dona Clarisse, nunca teria aprendido a ler. Se não fosse a Dona Clarisse, nunca teria aprendido a escrever. Mas, convenhamos, a pedagogia da reguada nunca foi bem-vinda, ou recomendável. Mas era assim nessoutro tempo, e por cada erro, uma palmada, por cada gralha, uma reguada, por cada asneira, uma estalada (e a pimenta na língua, uma vez em casa!). As mãos ainda me doem, porque as mãos estão vermelhas: a Dona Clarisse mandava-nos esticar os braços, e nós a medo, a mão aberta e a palma para cima mais os olhos fechados, e zás!, uma reguada do tamanho da dor, as lágrimas a fugirem dos olhos, e depois outra, e outra, (e outra) até já não nos doer mais, de tão quentes e inchadas ficavam as mãos. Houve um amigo meu que lhe doeu a mão direita durante tanto tempo que aprendeu a escrever com a esquerda! Hoje é ambidextro.

E as nossas mães e os nossos pais não só aprovavam as ditas reguadas, como ainda nos admoestavam, à noite, em casa, uma semana fechado no quarto, duas semanas sem sair à rua, três semanas sem semanada, um mês com a televisão desligada, e nós, pumba, toca a ler e toca a escrever aquela palavra cem ou mais vezes, por medo e por respeito (talvez mais por medo), para não termos de passar pelo mesmo outra vez, nunca mais! Uma geração de traumatizadinhos? Talvez. Por essas e por outras é que já não temos mais Donas Clarisses (paz à sua alma) ou reguadas, o mundo evoluiu e hoje queremos crianças mais saudáveis, mais felizes e, já agora, capazes de usar as duas mãos. Sem dor. Receio, no entanto, que a "obrigatoriedade" deste acordo ressuscite certos fantasmas: de repente, passamos todos à categoria de analfabetos e iletrados apenas porque almejamos escrever como sempre escrevemos, pensar como sempre pensámos, ser quem sempre fomos. E alma, não nos podem tirar, sem que com isso nos levem também a vida. Esperem, portanto, pela nossa morte, mas sentados, porque até lá continuaremos a escrever como sempre escrevemos: livres. E o acordo ortográfico é apenas isso, um acordo, o qual não tem outra função para além de nos distrair de tudo quanto é realmente importante: porque, à boa maneira Portuguesa, acabamos todos engalfinhados em questiúnculas de somenos importância enquanto outros decidem, verdadeiramente, por nós. Escrevam, portanto, mas desta feita como vos der na real gana. E viva a liberdade!

Quanto à régua da Dona Clarisse, houve um dia em que se partiu contra a carteira de madeira, tal era a força e a raiva da velha. Não pudemos deixar de rir com tal aparato, todos juntos, Dona Clarisse e tudo às bandeiras despregadas. Vá-se lá saber porquê, desde esse dia em diante nunca mais se ouviu uma reguada naquela sala de aula.

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