“A liberdade é muito melhor do que eu pensava”

Cresceu em Guantánamo, onde entrou com 15 anos. Vimo-lo despedaçado, num interrogatório onde pedia que o matassem. Resistiu. Aos 28 anos foi libertado sob fiança no Canadá e saiu a sorrir.

Foto
“Quero começar de novo. Há demasiadas coisas boas na vida” Dan Riedlhuber/Reuters

Foi o detido mais novo a entrar em Guantánamo, a última criança-soldado a sair de lá, o último ocidental a ser transferido da prisão criada pela Administração Bush para os capturados da “guerra ao terrorismo”. Omar Khadr foi detido no Verão de 2002, no Afeganistão, há 13 anos.

Até agora, a única fotografia que lhe conhecíamos mostrava Omar com 12, 13 anos, cabelo muito curto, olhos abertos, sobrancelhas grossas, buço adolescente. A partir daí, apareceu em desenhos feitos nas audiências na prisão da baía de Cuba. Em 2008, vimo-lo num vídeo de um interrogatório que membros dos serviços secretos do Canadá lhe fizeram em 2003. De uniforme cor de laranja, chorava e gemia, mostrava feridas no estômago e nas costas, dizia que já não tinha pés nem mãos e pedia: “Ajudem-me!” Mas também: “Matem-me!”

Graças aos esforços dos seus advogados, a Justiça ordenou a divulgação do vídeo e de um relatório em que um dos interrogadores canadianos descrevia Omar como “um jovem profundamente destruído” e afirmava que “todas as pessoas que estiveram em posições de autoridade sobre ele abusaram da sua confiança”: “pais e avós, os associados no Afeganistão, outros detidos, os militares dos Estados Unidos”.

Agora que foi libertado, em Alberta, surge-nos um jovem crescido e sorridente, que não mostra rancor. Perguntaram-lhe o que era mais surpreendente neste mundo moderno que acabava de pisar. Respondeu: “A liberdade é muito melhor do que eu pensava.”

Omar nunca tinha falado aos jornalistas desde que as tropas norte-americanas o capturaram depois de um tiroteio no Leste do Afeganistão, acusado de matar um soldado dos EUA por ter sido o único sobrevivente do grupo atacado pelos soldados (soube-se mais tarde que não fora o único a não morrer e que pode não ter sido ele a disparar contra o militar).

Omar foi libertado numa noite fria de Alberta, no Canadá, na quinta-feira (madrugada em Portugal). Mas sorriu sempre, enquanto respondia às perguntas com um sotaque canadiano (nasceu em Toronto). Apesar dos anos em que o Canadá nunca tentou a sua extradição e da demonização a que foi sujeito em grande parte dos media – ele era “um perigoso terrorista”, os Khadr “a família Al-Qaeda” –, o jovem agradeceu aos canadianos.

“Queria agradecer-lhes e pedir-lhes uma oportunidade, porque assim vão ficar surpreendidos”, disse, agradecendo até aos tribunais e aos xerifes que “tentaram de tudo para serem simpáticos”, quando tratavam da sua libertação.

Esta liberdade ainda não é total, mas comparada com os anos em Guantánamo é uma mudança que Omar nem tem como imaginar.

“Posso dizer que lamento a dor que possa ter causado às famílias das vítimas. Não há nada que eu possa fazer quanto ao passado. Mas espero que o futuro… Posso fazer qualquer coisa quanto ao futuro”, disse, quando o jornalista do Guardian lhe perguntou se tinha alguma mensagem para os EUA. Em 2010, depois de o funcionamento da comissão que o julgava ter sido adiado e suspenso com a eleição de Barack Obama, que prometera encerrar Guantánamo no primeiro ano do seu mandato, Omar afirmou-se culpado de crimes de guerra – mais tarde, disse que só o fizera para poder ser repatriado para o Canadá.

Começar de novo

O Governo do país onde Omar nasceu e para onde quis desesperadamente regressar tentou até ao fim combater a sua libertação. Apesar das tentativas para o manter na prisão, os representantes do Governo desistiram de insistir que Omar é uma ameaça  pública e admitiram que não foi “um prisioneiro problemático”, nem em Guantánamo, nem nas prisões canadianas por onde passou desde 2012.

Mas o ministro da Segurança Pública, Steven Blaney, não deixou de afirmar, num comunicado depois de conhecida a decisão: “Estamos desapontados e lamentamos que seja permitido a um terrorista condenado regressar para a sociedade canadiana sem cumprir toda a sua sentença.” Sabe-se que o executivo vai recorrer.

Khadr também tem uma mensagem para o primeiro-ministro canadiano, Stephen Harper, que não o queria no Canadá, nem preso. “Vou ter de o desiludir. Eu sou melhor pessoa do que o que ele pensa que sou.”

“Quero começar de novo. Há demasiadas coisas boas na vida”, disse Omar, que vai viver com a família de um dos seus advogados, Dennis Edney, aquele que lhe apertou um dedo e disse “Conseguimos”, quando a juíza afirmou: "Senhor Khadr, está livre.” Omar vai usar uma pulseira electrónica e o seu uso da Internet será vigiado. Não poderá ter um computador portátil, nem um telemóvel, nem sair de casa entre as 22h e as 7h.

Borrego e flores

A família Edney tinha preparado borrego para o jantar e cupcakes para a sobremesa. Alguns dos novos vizinhos passaram pela nova casa e deixaram flores. Um deles, Tim Winton, um médico de 62 anos, assistiu à conferência de imprensa no passeio e afirmou-se surpreendido com “a pessoa boa em que Omar se tornou”. “Estamos felizes por recebê-lo aqui”, disse ainda, descrevendo a libertação do jovem como “um dia muito bom para o Canadá e para os direitos humanos”.

Foi o pai de Khadr, Ahmed Said, que levou a família para o Paquistão, e depois para o Afeganistão, inicialmente porque trabalhava na ajuda aos refugiados da guerra afegã. Said foi morto por forças paquistanesas em 2003. “Há muitas perguntas que eu gostaria de fazer agora ao meu pai… muitas decisões que ele tomou, os motivos para nos levar para lá, muitas perguntas sobre as decisões que tomou na vida”, disse Omar, nos únicos momentos em que a voz lhe tremeu.

Questionado sobre as suas decisões de vida, Omar disse que quer acabar os estudos e depois procurar um emprego na área da saúde, por ser importante ter empatia com as pessoas em sofrimento. Aos que ponderam um caminho de extremismo, Omar responde com a importância da educação. “Não deixem que as emoções vos controlem. A educação é muito importante. Reparei que muitas pessoas são manipuladas por não terem estudado.”

"Desistir de mim"

Edney, com quem agora vai viver, passou quatro anos a tentar que o Canadá o trouxesse de volta a casa antes de 2007, quando finalmente conseguiu autorização para entrar em Guantánamo e o conhecer, depois de Omar ter decidido que já não queria os seus advogados norte-americanos.

“Tens de ter esperança, Omar. Sem esperança, todos morremos”, disse-lhe Edney no final desse primeiro encontro. Omar respondeu que não ia desistir do advogado: “Mas tu vais desistir de mim. Toda a gente desiste.” Alguns dias depois, numa conversa com a jornalista Michelle Shephard, que escreveu Guantanamo’s Child, Edney lamentava-se. “Penso que ele está perdido. Não sei se o consigo trazer de volta.” Sete anos depois, Edney não desistiu de Omar, nem Omar parece ter-se perdido.

Sugerir correcção
Ler 8 comentários