Anamneses

Vozes Interiores parte das memórias pessoais de André Gomes para construir uma obra repleta de melancolia

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O meu Cristo partido associa a aldeia da infância do artista, Odilon Redon e um poema de Ramon Cué: objectos, recordações DR
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Há entre esta exposição de André Gomes e aquela que a precedeu em Lisboa, A sesta de um fauno (Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, 2014), mais do que um único ponto em comum. Ambas dão continuidade e desenvolvem aquele que tem sido o novo enfoque do trabalho deste artista: uma exploração visual das memórias pessoais e da sua imbricação na prática artística que recorda a figura de retórica da anamnese, que consiste justamente na ficção do trazer para o presente uma memória antiga; e a reflexão sobre os possíveis pontos de contacto entre as imagens que daí resultam e a natureza própria de dois lugares que, noutros tempos, foram palacete de habitação da alta burguesia lisboeta, mas que hoje partilham um com o outro dessa ausência melancólica que as recriações de ambientes passados tantas vezes transmitem. Também nestes lugares, tanto na Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves como, agora, na Casa-museu Medeiros e Almeida, a exposição de objectos de arte e a reconstituição possível e idealizada de um quotidiano que se adivinha sempre extraordinário, invulgar e rodeado de beleza ecoam na proliferação de objectos, de mementos e de recordações significantes no conjunto de imagens incluídas em Vozes Interiores.

André Gomes trabalha a fotografia. E, nesta, a capacidade de evocar uma narrativa, uma estória, a partir da justaposição de imagens fotográficas. A fotomontagem trabalhada digitalmente é a técnica que elege para chegar a esse objectivo. Tomemos como exemplo desta afirmação O meu Cristo partido, uma composição em que se associam um lugar da aldeia de infância, um livro de arte com reproduções de Odilon Redon e a imagem de um Cristo partido, sem cruz nem membros, que segundo o autor remete para um poema de 1963 de Ramon Cué. Há aqui, como diz Sérgio Mah, que assina o texto de apresentação da exposição, a ideia de uma narrativa, embora a concretização dessa mesma narrativa se negue a cada instante. Em vez disso, a imagem final obtida por justaposição de outras imagens funciona como suporte do devaneio, da instalação de um estado melancólico, de uma tristeza muito fin-de-siècle que a auto-representação como Antero de Quental em Vozes Interiores, a peça que dá o nome à exposição, traduz como nenhuma outra.

Nem todas as fotografias se constróem aqui, contudo, a partir desta técnica já centenária da fotomontagem. Algumas são imagens aparentemente mais simples (Diónisos — um achado em Pompeia ou O segredo de Fernand Knopff), embora todas possuam em comum essa ligação à vida pessoal ou aos espaços privados de André Gomes que mencionávamos acima. O artista, durante a visita guiada que nos fez, explicou minuciosamente o processo de construção de cada imagem e a recordação ou as recordações específicas que estavam na sua origem. Há mesmo uma vitrina que mostra uma extensa série de pequenas fotografias que explicitam ainda mais estes laços entre memória e real. E contudo eles não se esgotam nessa explicação; boa parte das imagens remete também para textos específicos que, por sua vez, tocam noutras actividades do artista: a sua profissão de actor ou a sua formação de filósofo. A possível interpretação desta série de imagens passa assim, obrigatoriamente, por uma espécie de descida em abismo até às raízes do sentimento de perda ancorado na memória, e do impulso narrativo que permite, ou não, superá-lo. Abismo, perda, memória, superação: palavras que não permitem afinal definir um fim, um termo para este movimento processual. André Gomes tem disso consciência, e é esta lucidez que lhe permite uma e outra vez, série após série, construir uma obra coerente e única no nosso meio artístico.

 

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