Um autarca médico e um chefe de gabinete ex-padre estão a dar cabo do tabaco em Castro Marim

O êxito no programa de libertação da dependência da nicotina, lançado por um município algarvio, faz deste um caso de sucesso, inédito a nível nacional.

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Enric Vives-Rubio
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Quer deixar de fumar? A pergunta, feita pelo autarca de Castro Marim a um doente parece de retórica, mas não é. O autarca Francisco Amaral, médico, dá consultas antitabagismo nos Paços do Concelho. O chefe de gabinete, ex-padre, ministra o apoio psicológico e a câmara paga os medicamentos. O método, garante, dá resultados quase a 100% no abandono do vício, quando o remédio é tomado com uma certa dose de fé na capacidade individual para mudar de hábitos

A consulta clínica decorre dentro do gabinete do presidente do município, numa conversa informal. Francisco Amaral segue um “guião” técnico concebido de modo a fazer sentir ao fumador que ele é um “dependente” e tem de se libertar do fumo, se quiser ter qualidade de vida. Arnaldo Vitorino, motorista, está sentado com as mãos pousadas nos joelhos. O médico/autarca, envergando um blazer azul-escuro, pergunta: “Quanto tempo leva até fumar o primeiro cigarro da manhã?” “É logo quando me levanto. Quando vou à casa de banho, já vou a fumar.” O clínico traça o diagnóstico: “Muito dependente.” A pele do rosto do homem, de 52 anos, revela sinais de envelhecimento precoce.

Francisco Amaral faz uma pausa enquanto mede a tensão arterial do doente. De seguida, lança a pergunta sacramental. “Escute uma coisa: sabe por que é que fuma?” A resposta sai acompanhada de um sorriso amarelo: “Para ser sincero, não. Primeiro, comecei porque gostava, agora acho que sinto necessidade.” O chefe de gabinete, Dinis Faísca, licenciado em Psicologia, escuta com atenção e toma notas para mais tarde intervir no processo de tratamento. A campanha contra o tabagismo, lançada pela câmara, decorre desde o princípio do ano, com a oferta de apoio clínico e medicamentos a todos os munícipes.

“O Estado explora a saúde e a carteira do fumador uma vida inteira; mais tarde, o fumador quer deixar o tabaco e não há qualquer comparticipação nos medicamentos”, critica Francisco Amaral. Da lista dos 41 munícipes que pediram ajuda, afirma: “Trinta e cinco já abandonaram o tabaco e os outros seis, estou convencido, também vão conseguir.” A média nacional dos casos de sucesso, frisa, anda pelos 22 a 23%, quando em Castro Marim sobe para perto dos 100%. O segredo para o êxito no tratamento, conta, “está no acompanhamento aos pacientes”. É neste capítulo que entra Dinis Faísca, um ex-padre licenciado em Psicologia e com um mestrado em Terapia Familiar. O abandono do sacerdócio deu-se ao fim de 14 anos de actividade: “Achei que o que estava a fazer já não me preenchia, não estava feliz com aquilo que fazia”, confessou. Deixou de celebrar missas há quatro anos, passando a abraçar causas sociais e políticas.

A luta contra o tabagismo, encetada pelo social-democrata Francisco Amaral começou há mais de uma dezena de anos, quando era, na altura, presidente da câmara do vizinho concelho de Alcoutim. Nas últimas eleições – por ter atingido o limite de três mandatos consecutivos – candidatou-se a Castro Marim empunhando a bandeira da “saúde para todos” e saiu vencedor num concelho que já era social-democrata.

O tabagismo, diz, é uma “toxicodependência, tal como há a dependência da cocaína e da heroína”. A última coisa que se pode fazer a um dependente, adverte, é “forçá-lo a deixar a nicotina temos de trabalhar com pinças”. A demora para uma consulta de cessação tabágica, no Hospital de Faro, varia entre os três e os quatro meses. Em Castro Marim, diz, é só preciso bater à porta do gabinete do presidente da câmara. “Estou sempre disponível, eu e o meu chefe de gabinete”, enfatiza. O preço do tratamento completo, custeado na íntegra pelo município, ronda os 250 euros.

Promessa de avó à neta
Ana Maria evoca o dia em que deixou de fumar, como se fosse o dia do seu aniversário – 10 de Março de 2015. A mulher, cantoneira de limpeza, justifica a opção: “Andava muito cansada, sentia que o tabaco me estava a matar.” Agora, rejuvenesceu e ganhou novo fôlego. “Tenho 50 anos, mas não sou nenhuma velha”, proclama, fazendo salientar a cor esverdeada dos olhos quando ergue as pálpebras. “Gosto de ir a bailes e discotecas”, acrescenta. Efeitos secundários? Aumentou cinco quilos no peso. Porém, mais quilo, menos quilo, nada disso a preocupa. Pelo contrário, ficou até satisfeita. “Parece-me que renasci.” O peso actual, 52,9kg, está dentro das normas, tendo em conta que mede 1,63m.

Depois de ouvir os conselhos do ex-padre e as recomendações clínicas do autarca, deixou de sentir que o cigarro poderia servir de calmante. “Nos dias em que estava nervosa, fumava, fumava… sei lá, engolia fumo.” Agora que se diz liberta desse vício, manifesta vontade de revelar o que lhe vai na alma. ”Sinto a necessidade de aconselhar as colegas, como se estivesse a transmitir a palavra de Deus – não fumes, vai ter com o senhor presidente”, aconselha.

A colega Rosa Maria, empregada dos balneários públicos, seguiu-lhe o exemplo. Aos 59 anos, colocou um ponto final no vício que se lhe entranhou no corpo “por brincadeira” quando tinha 35 anos. Lá em casa, por enquanto, é ela a única que se libertou da dependência da nicotina. As duas filhas e o filho continuam agarrados ao fumo. Apesar de elogiar a iniciativa autárquica e o “apoio do senhor presidente”, considera que o que determinou a sua mudança de atitude foi uma conversa com a neta, de 16 anos. A avó quando fizer 59 anos vai deixar de fumar”, prometeu-lhe. A neta questionou o “porquê” da decisão. “Estou a ficar velha e com muitas dores”, disse. A reacção fê-la redobrar a coragem: “Olha, fazes bem – assim a minha mãe [33 anos] fizesse o mesmo.”

Do grupo dos 41 ex-fumadores, cerca de metade são funcionários da autarquia. Otílio Calvinho, 53 anos, administrativo na câmara, é caso único por ter recusado ajuda do município. “Quis dar-me uma chapada de luva branca”, diz o presidente Francisco Amaral, referindo que ele lhe prometeu que abandonaria o vício sem recorrer ao tratamento. “Tomei a decisão em Outubro e até agora não desisti”, diz o funcionário. Há cerca de dez anos fez a primeira tentativa para acabar de vez com os cigarros, mas não conseguiu. Ao fim de quatro anos, “problemas pessoais” levaram-no a uma recaída. Dos efeitos nesta segunda tentativa, só se queixa do aumento do peso, mas está a dar a volta à situação. Para compensar, faz “exercício físico a dançar no grupo etnográfico”.

O sucesso começa a ultrapassar as paredes da câmara, Depois de ver a afluência que o programa está a ter, o farmacêutico da terra foi também experimentar a receita, passada pelo autarca: “Vou tentar não estragar o êxito do resultado dos 100%”, disse ao PÚBLICO, na quarta-feira, à entrada para uma consulta médica.

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