Saltos em frente

A “chamada às armas” dos homens em defesa dos direitos da Mulher está na ordem do dia nos países democráticos que mais intensificam a luta pela igualdade/paridade entre os sexos.

Foi uma luta judicial entre um David e um Golias do implacável mundo da moda a que a Christian Louboutin, SA moveu contra a Yves-Saint Laurent, SA no Tribunal de Apelação de Manhattan, pelo direito de fabricar e de vender, em exclusivo, calçado com a sola e com a alma do mesmo tingidas de vermelho, em contraste com a cor ou com o padrão dominantes. A Louboutin ganhou o processo e entre os ignorantes que impregnam a blogosfera, alguns deles aplaudiram a decisão do tribunal, não pelo cumprimento da lei, mas pelo facto de considerarem que fora Louboutin, e não Saint Laurent, quem inventou a sola e a alma dos sapatos em vermelho.

Deveriam saber que foi um acaso que ditou essa moda em Paris, em 1662, quando o duque de Orleães, irmão de Luís XIV e um boémio incorrigível, regressou ao palácio, após uma longa noite de rambóia, com o salto, a alma e a sola dos sapatos tingidos com o vermelho do sangue proveniente dos matadouros e que banhava o chão do Marché des Innocents, actual Les Halles. A corte, ingenuamente acreditando ser mais uma moda do delirante monsieur, adoptou o vermelho nessas partes do calçado, o que pode ser comprovado na pintura de Hyacinthe Rigaud que retrata o "Rei-Sol" com sapatos de tacões vermelhos. Mais do que a cor, o que ressalta nesse quadro do Museu do Louvre é o pormenor de o tacão ser alto, o que nessa época (1700) fazia furor entre os homens ditos bem-nascidos, mas que, nos dias de hoje, apenas se vê em apontamentos de moda e nas botas dos vaqueiros dos EUA e da América do Sul (já na Antiguidade, os guerreiros persas usavam “saltos altos” para melhor se firmarem nos estribos durante os combates). Os tacões ou saltos mediamente altos deixaram de ser usados pelo sexo masculino, sobretudo a partir da Revolução Industrial, e os stilettos criados na década de 1950 para as mulheres apenas são adoptados por homens em actos fetichistas, de transgressão ou de provocação. No entanto, têm sido calçados como sinal de solidariedade e de denúncia, como sucede na marcha norte-americana Walk a Mile in Her Shoes, em que homens em sapatos de saltos altos caminham em protesto contra a violação, a agressão sexual e a violência contra as mulheres. Saúdo, por isso, a revista Máxima, que, por iniciativa da directora, Sofia Lucas, lançou a campanha 100 Homens, Sem Preconceitos – Um Passo pela Igualdade em que uma centena de homens posa calçando stilettos, muitos dos quais vermelhos, para alertar para a gritante desigualdade de género. Escritores, artistas plásticos, músicos, cientistas, médicos, actores, modelos, entertainers e atletas aceitaram ser fotografados calçando sapatos de saltos altos em nome dos direitos da Mulher. As fotografias integram a exposição homónima que está patente até ao dia 2 de Abril próximo, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

 

  

 


A “chamada às armas” dos homens em defesa dos direitos da Mulher está na ordem do dia nos países democráticos que mais intensificam a luta pela igualdade/paridade entre os sexos. Entre nós, e tanto quanto me é dado aperceber sobre o assunto, o debate é inexistente, centrados que estamos, nos media, nas análises da política, da economia e do futebol. Quem tem percepção do trabalho desenvolvido pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género? Quem tem conhecimento da Biblioteca Feminista Ana de Castro Osório, em Lisboa, fundada por Maria Antónia Palla? Quantos homens e mulheres se apercebem, verdadeira e lucidamente, do importante papel das mulheres na sociedade? Quem tem consciência do fosso abissal que, em termos de direitos, separa mulheres e homens, também em Portugal, desde que não se esteja envolvido em investigações académicas ou em organizações nesse domínio? Quem terá conhecimento do que é o novo Feminismo de Quarta Geração (que carece, ainda, de peso intelectual), de que são exemplo mais visível as Pussy Riot, e que está consubstanciado no livro All the Rebel Women The Rise of the Fourth Wave of Feminism (guardianshorts.com), de Kira Cochrane? Quem terá lido, entre nós, Feminism & Men (Zed Books), de Nikki van der Gaag, ou Metade do Céu (Bertrand), de Nicholas D. Kristof e Sheryl Wu Dunn, vencedores do Prémio Pulitzer? Que homens portugueses ouviram falar ou conhecem a organização Men Engage? Quem sabe o que é um homem feminista?

O apelo aos homens é uma nova visão do Feminismo que espoletou nesta década, acreditando que eles devem defender a igualdade e os direitos da Mulher, não apenas por uma questão de direitos humanos, mas porque só têm a ganhar com isso. Ao favorecerem as mulheres, nomeadamente as que lhes são mais chegadas, favorecer-se-ão a eles mesmos porque não só viverão mais felizes, como se libertarão do jugo cultural que é a imposição do padrão de masculinidade vigente. Como se tem vindo a defender, com dificuldade, o Feminismo pode ser libertador para os homens. Porque o poder é masculino, propagam as feministas e quem apoia o movimento feminista que os homens têm de entender que a luta das mulheres pela igualdade só persiste porque ainda não foram concretizadas as mudanças que combatem a desigualdade existente entre os sexos e que essa realidade é ainda mais desesperante em países não- democráticos ou subdesenvolvidos. Essa concentração desequilibrada no poder masculino levou Ruth Hunt, dirigente da britânica Stonewall, a afirmar o seguinte: “Sejamos francos: a única razão pela qual o movimento pela defesa dos direitos dos homossexuais avançou muito mais do que o [movimento] feminista é porque existem homens nesse movimento.” A questão mantém-se: se os homens dominam o poder através do sistema patriarcal, por que razão haverão de abrir mão disso e de aderir ao movimento feminista? Porém, a nova paternidade ou o modo como, hoje, os homens abraçam a família, através dos filhos, está a “diluir”, aos poucos, o sexismo e o machismo e a abrir-lhes os olhos sobre a crua realidade.

As feministas e estudiosos do movimento apontam, agora, as baterias aos media, acusando-os de indiferença, de complacência, de silêncio (ou de silenciar) no que se refere à luta das mulheres pelos seus direitos, como às próprias mulheres. Dominados por homens (entre nós, à excepção das revistas femininas, o PÚBLICO e o Jornal de Negócios são órgãos da comunicação social dirigidos por mulheres), os media centram-se nos homens e nos assuntos que mais directamente lhes interessam. No geral, porque existem excepções, as mulheres são relegadas para os faits-divers ou para notícias que as vitimizam, enquanto os homens se apresentam como especialistas ou autoridades. Basta vermos a televisão portuguesa, o meio mainstream por excelência, onde nos debates ou, até, nos júris dos concursos de entretenimento, as mulheres surgem por uma questão de “quotas”, uma entre quatro ou cinco homens, aparentando ser algarismos e, neste caso, apenas o 1. Na publicidade televisiva, sexista e machista por tradição, o homem conduz os automóveis e as mulheres o carrinho do supermercado. A cerimónia de entrega dos Óscares é o zénite do sexismo numa indústria de homens, desde a concepção e fabricação dos equipamentos até à exploração das salas de cinema. Nela, as mulheres são a decoração da dita passadeira vermelha e nos galardões apenas se resumem às categorias de melhores actrizes, guarda-roupas, maquilhagem e cabelos. Em 87 anos de Óscares, apenas quatro mulheres foram nomeadas como realizadoras e apenas uma venceu. Na indústria das músicas rock e pop, as mulheres estão praticamente afastadas dos instrumentos, restando-lhes a voz. Já agora: quantos de nós conhecemos mulheres que se destaquem como chefs de cozinha, como humoristas (stand up comedy incluída) ou como cartoonistas, para nos ficarmos por aqui? Até na indústria da moda, culturalmente mais voltada para as mulheres, são os homens que a dominam, quer no negócio, quer na criação.

No digital, as mulheres que têm a coragem de denunciar a desigualdade são continuamente ameaçadas de morte ou de violação, a coberto da agressividade e da cobardia que inunda a Internet. Como homem, eu esforço-me por defender os direitos da Mulher e a luta a eles inerente por respeito pelas mulheres, por mim e porque pertenço a uma família essencialmente matriarcal. E também porque acredito naquela verdade que diz ser a prostituição a mais velha profissão do mundo e o sexismo o mais antigo preconceito. Por tudo isso, também eu não teria tido o mínimo problema em posar com stilettos, fossem eles vermelhos ou não…

Jornalista
 



 

 

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