A democratização das tragédias

Por vezes, muitas vezes, é difícil distinguir, por meio da cacofonia, dos berros, da multidão que tudo leva, o murmúrio do herói quotidiano

Foto
Diego Torres Silvestre/Flickr

Lá fora está um dia frio e chuvoso de Inverno. De vez em quando o granizo tentar entrar pelas janelas a dentro, metralhando os vidros e ricocheteando por todo o lado. Cá dentro, no ecrã do computador, o cenário não é muito melhor, com notícias de tragédias, dor e sofrimento pelo mundo fora, assim como as respectivas condenações. Fecho o browser e abro um novo ficheiro no processador de texto.

Apercebo-me que é comum quer online, quer nos media com presença física, lermos opiniões desiludidas com o aparente dois pesos e duas medidas com que se medem as tragédias actuais. Isto a propósito do ataque ao Charlie Hebdo e, por exemplo, às atrocidades cometidas pelo Boko Haram.

O que nos é dolorosamente óbvio é que de facto esses dois pesos e duas medidas são de facto reais e usados rotinamente. Esta é uma frente de batalha. Tentar distribuir democraticamente a nossa repulsa e condenação, como no velho adágio popular, o mal pelas aldeias. Embora politicamente correcta esta atitude homogeneizadora do descontentamento peca por ser contrária à natureza humana. Àquela mesma natureza que abranda o carro para ver melhor o líquido vermelho num acidente, àquela que se preocupa mais com o mais próximo de si, quer geograficamente, quer culturalmente. E o Portugal do século XXI está, para o melhor e para o pior, mais próximo do cidadão francês, europeu e metropolitano do que das famílias tribais do norte da Nigéria. Sim, o sofrimento humano é igual para todos, mas a nossa percepção do mesmo não (pelas condicionantes que já referi). A isto justa-se, claro, uma cobertura mediática díspar.

Acontece algo semelhante quando, também nas redes sociais, nos pedem para ajudar alguém com uma terrível doença, ou para nos manifestarmos contra os maus tratos aos animais numa longínqua província chinesa ou sul americana– pedidos esses – quase sempre acompanhados por imagens gráficas e chocantes. Isto tem o efeito pernicioso de nos fazer sentir mal, quer pelo choque que tais imagens e actos nos provocam quer pela impotência de agirmos de forma a mudarmos minimamente o resultado final.

Um outro resultado é ainda a saturação da mensagem vinculada, ou seja, depois de estarmos repetidamente expostos a situações terríveis que nos agarram pelo colarinho e nos abanam, pedindo a nossa acção e condenação, mas que se escondem para lá do nosso controlo. Lenta e imperceptivalmente nos começamos a habituar ao inabituável.

Se assentirmos a todos os estímulos a que estamos sujeitos nos media acabamos com uma visão do mundo, e, para todos os efeitos, da nossa espécie, desoladora, fria e sem aparente sentido.

Durante milénios a religião providenciou um porto seguro perante este cenário, mas como a história e actualidade nos ensinaram, também ela não é imune ao extremismo. A meu ver restam-nos nós. A comunidade que nos cerca e de que fazemos parte.

Por vezes, muitas vezes, é difícil distinguir, por meio da cacofonia, dos berros, da multidão que tudo leva, o murmúrio do herói quotidiano, aquela senhora que alimenta os gatos vadios apesar da quase inexistente pensão, alguém que impede o "bullying" de um miúdo, ou o assédio da mulher que anda sozinha à noite, ou o voluntário que ajuda alguém mais que recusa o mérito quando lho querem atribuir. São motivos de esperança para o futuro.

Agora a chuva parou e o sol inunda o interior da sala. É sol de pouca dura, eu sei, mas sabe bem.

Sugerir correcção
Comentar