Saberes coloniais e terror

Vale a pena perguntar se o lusotropicalismo, como qualquer ideologia utópica, não necessitou sempre de um certo grau de violência para se reproduzir na ordem das ideias e se recriar no domínio das práticas.

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Regedoria Quica, no Uíge, Angola, 1962: a relocalização dos africanos nestes centros permitia um maior policiamento e vigilância sobre os povos, agora menos dispersos e concentrados Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros
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Regedoria Quixona, no Uíge, em Angola, 1962: construídas pelos próprios africanos que se queria “reconquistar”, as regedorias deviam obedecer a um traçado geométrico Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros

A guerra colonial começou em Angola no primeiro trimestre de 1961. Em Luanda, nas prisões. No Norte de Angola, na Baixa do Cassange, nas áreas de produção de algodão. Ou, no Uíge, região produtora de café. As conhecidas imagens dos massacres perpetrados, nessa ocasião, são originárias desta última região.

A par da guerra, políticos, diplomatas, historiadores e cientistas sociais também se envolveram em lutas. Lutas de interpretação, pela imposição de sentidos. Lutas por um poder que, apesar de simbólico, tem a mesma capacidade para produzir formas de violência e para gerar outras tantas formas de incompreensão e de intolerância, frente ao ponto de vista do adversário. Sobretudo, lutas que têm em vista a definição de um presente, tão dependente da herança colonial e das marcas impostas pela guerra iniciada em 1961.

Entre os vários conflitos de interpretação, um dos afunilamentos analíticos mais frequentes, que se faz sentir em colóquios e publicações, corresponde à seguinte antinomia: de um lado estão os que defendem argumentos de carácter integracionista, defendendo o carácter excepcional de um império colonial que, por ser tão singular, não podia, nem pode, ser considerado como tal, tratando-se mais de um “mundo que o português criou”, luso-tropical, miscigenado, plástico, híbrido e, por isso mesmo, favorável às leituras new age centradas no memorialismo; do outro, ficam os que denunciam constantemente as práticas de violência, de exploração, de racismo e de arcaísmo que caracterizaram esse mesmo “mundo”. Que esta antinomia transfere, de forma inconsciente, para dentro dos discursos contemporâneos dos historiadores, cientistas sociais e políticos, posições do campo político definido pelas lutas coloniais do terceiro quartel do século XX afigura-se uma constatação evidente.

Porém, mais difícil é saber como romper com uma tal antinomia que empobrece a investigação, obrigando os intervenientes a auto-satisfazerem-se na rememoração dos seus termos extremados. É que nem a construção de uma ideologia oficial de defesa  da “presença de Portugal em África”, no período posterior à Segunda Guerra, pode ser reduzida ao lusotropicalismo de Gilberto Freyre, quando este foi considerado quase persona non grata por muitos dos apoiantes de Salazar. Nem, tão pouco, as críticas à violência e à discriminação podem ser consideradas um monopólio dos que sempre se opuseram a Salazar.

Mais do que constatar uma simples não conformidade entre o discurso oficial luso-tropical e as práticas coloniais portuguesas, há que reconstituir o sentido de muitos processos de tomada de decisão. Em muitas situações, verificou-se uma grande ambivalência entre as decisões de domesticar as populações brancas (incluindo as autoridades do Estado) e os planos de aterrorização generalizados. Uma ambivalência que não corresponde ao simples pôr em prática de uma ideologia (entendida esta como farsa ou operação de dissimulação) ou ao exercício da violência.

Farwest ou Far...uíge
Em Julho de 1961, alguns meses depois da revolta desencadeada por elementos da UPA (União das Populações de Angola, movimento político anti-colonial) na região cafeeira do Uíge, no Norte de Angola, os colonos portugueses faziam ouvir a sua opinião, num artigo de jornal intitulado “Postal a um Ministro – TAREIA…MUITA TAREIA”. O seu autor, em representação dos europeus do distrito, criticava abertamente todos aqueles que advogavam a reconquista dos “corações e das almas”, através de meios de doutrinação e de persuasão: “com papelinhos, rebuçados e quejandas ‘brincadeiras’ nada se conseguirá. Tareia, senhor Ministro, tareia! Vamos a dar-lhes pancada de criar bicho. Eles são ‘bebés grandes’ que se ausentaram da casa dos pais. Urge, primeiro, dar-lhes açoites, muitos açoites” (Jornal do Congo, 20-7-1961). Estava em causa uma oposição declarada aos planos do Estado com o objectivo de recuperar e concentrar em aldeamentos estratégicos – as regedorias – os africanos que se tinham refugiado no mato ou atravessado a fronteira para o ex-Congo Belga. Circulava, então, a ideia de que esses planos seriam “suaves”, por utilizarem métodos de conquista de “hearts and minds”, de guerra psicológica, e por não fazerem uso de uma violência punitiva.

Pela mesma altura, o caos instalado na zona levara a manifestações esporádicas, mas organizadas, de massacres raciais: ao longo de semanas, grupos de portugueses, em conluio com uma facção mais conservadora das autoridades administrativas e policiais, alvejaram africanos que lhes não obedeceram. Embriagaram e incitaram mestiços a assassinarem, à catanada, os nativos de uma sanzala perto de Negage. Assaltaram a Missão Evangélica do Norte de Angola e, numa das duas aldeias ainda povoadas por africanos, raptaram e assassinaram a tiro o seu soba, no cume de um monte. Tudo isto com o beneplácito de certos agentes policiais, militares e de agentes da PIDE. Quando dois dos responsáveis foram presentes à justiça, a maioria da população branca acorreu  a manifestar-lhes o seu apoio.

Tais episódios suscitaram o horror dos burocratas em Lisboa, capital do Império. Eram estes que, em 1961, se referiam ao Norte de Angola como o Farwest português, ou seja, o “Far…uíge”.  No seu entender, era ali que os “brancos”, racistas e distantes do “modo tradicional de ser português”, andariam a fazer justiça pelas suas próprias mãos com a conivência da polícia e de alguns oficiais militares. Tal como se, meses antes, os mesmos funcionários não tivessem exortado a uma enérgica e indiscriminada repressão das populações africanas daquela zona. Não tivessem sido, também, responsáveis pelas directivas muito claras para diminuir artificialmente os números públicos de vítimas africanas, nas primeiras ofensivas da força aérea portuguesa. E não andassem, igualmente, ocupados com uma série de alterações cosméticas às estatísticas ultramarinas – algumas delas, diga-se de passagem, aproveitadas, hoje, sem critério, em nome da quantificação da ciência social, sem esquecer aqueles que delas se servem para fundamentar o falhanço da pretensa política assimilacionista dos portugueses em África.

Pulsões sexuais e controlo
Outro caso em que a referida antinomia se mostra incapaz de satisfazer do ponto de vista analítico é o do próprio plano de reagrupamento e organização comunitária das populações. Revestido de múltiplos sentidos, ele designou um conjunto de técnicas de controlo social: formais, tais como o recenseamento obrigatório dos povos concentrados e sua hierarquização numa escala de maior ou menor colaboração com o Estado colonial; e informais, tais como o uso deliberado, mas tudo indica esporádico, de redes de prostituição para a “auscultação da opinião pública”. Este último era, aliás, um ponto crítico da recriação forçada das sociedades plurirraciais.

Um relatório dos serviços de acção psicossocial do Distrito do Inhambane, em Moçambique (1962), deu conta da situação depreciativa a que as mulheres que falavam português se sujeitavam. Pelo facto de fazerem uso da língua portuguesa eram enxovalhadas, estigmatizadas e acusadas de prostituição. O inspector do Ministério do Ultramar que ficara incumbido de rever tal relatório não hesitou em atribuir um sentido óbvio ao que se passava. No seu entender, tal acontecia porque era nas relações sexuais que residia a “quase única oportunidade de convívio entre brancos e pretos”. Uma interpretação deste discurso burocrático tem de pôr em evidência a crença do autor nos instintos ou impulsos mais básicos do povo português em África. Longe de se constituir num mero exercício de propaganda ou sequer em discurso público, tais notas, secretas, mostram como a racionalidade dos agentes estatais não pode ser dissociada de uma mentalidade de matriz luso-tropical.

A mesma elite “reformista”, que aboliu o Estatuto do Indigenato em Setembro de 1961, acabando com a discriminação entre indígenas e cidadãos europeus (civilizados), propôs a criação de pequenos esquemas de vigilância, financeiramente viáveis. Por exemplo, um bom uso das “prostitutas-lavadeiras”, daria, regra geral, excelentes informadoras, dado o conhecimento íntimo que tinham dos africanos destribalizados, ou seja, dos que eram considerados mais propensos a rebelarem-se. Vizinhança e vigilância, intimidade e controlo entravam em relações de duplicidade, fundamentais tanto na retórica como nas práticas de defesa do império. Só desse modo se poderá compreender o sentido de uma outra proposta que talvez nunca tenha saído do papel: a de que se deveriam abrir campos de concentração, com técnicas não violentas, não racistas, mas de natureza essencialmente cristã. Todos estes esquemas começaram por ser propostos entre Janeiro e Março de 1961.

Lusotropicalismo versus violência?
Uma abordagem centrada na relação entre saberes coloniais e terror – para evitar o conceito de políticas de aterrorização das populações, o qual supõe um maior grau de intencionalidade e formalidade institucionais – permite conceber objectos de análise impossíveis de reduzir a interpretações mutuamente exclusivas.

No caso de Carmona ou do Uíge, a violência racial dos europeus sobre os africanos constitui a dimensão central de análise. O modo como aquela foi rejeitada em Lisboa, suscitando renovadas preocupações acerca da domesticação dos brancos, não deve ser reconduzido a uma simples defesa do interesse nacional. E mesmo a ambivalência manifestada pelas instituições metropolitanas – que repudiavam a violência, sem deixar de fazer uso dela – deveria estar no cerne de investigações interessadas em explicar os processos de tomada de decisão do Estado colonial.

O mesmo vale para o caso da prostituição em Moçambique, constituída em instrumento de controlo, bem como numa prática reconhecida secretamente pelo poder, porque representava a mais básica manifestação da capacidade inata dos portugueses para a miscigenação. Ou seja, a relação sexual funcionava como paradigma e último reduto de uma inclinação gregária.

A questão comum a ambos os casos estará, ainda, em procurar conhecer qual a parte da acção histórica, da prática, que se ficou a dever ou simplesmente correspondeu a um quadro mental luso-tropical. A este propósito, vale a pena perguntar se o lusotropicalismo, como qualquer ideologia utópica, não necessitou sempre de um certo grau de violência para se reproduzir na ordem das ideias e se recriar no domínio das práticas, como parece ter sucedido em ambos os casos aqui sumariamente analisados.

Historiadores, FCSH/Nova

Esta série é feita em colaboração com os participantes da conferência O Ano do Fim. O Fim do Império Colonial Português, organizada pelo ICS

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