Tantos Charlies, tão pouca liberdade

Enquanto estamos ocupados a querer ser Charlie e a lutar por uma suposta liberdade de expressão, os principais governos ocidentais apressam-se a ajudar nessa luta – cortando justamente a liberdade de expressão

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Benedetto de Maio/Instagram

Pessoas com filiações nacionalistas, racistas, extremistas e fudamentalistas podem parar já de ler aqui. Este texto não vos vai interessar.

Sou honesto: não gosto de religião. Não gosto, em particular, de sistemas religiosos institucionalmente organizados. É a partir dessa perspectiva que escrevo.

Faz uma semana agora que 12 pessoas morreram às mãos de criminosos. São esses criminosos os únicos responsáveis directos pelas 12 mortes. Dessas 12 pessoas – homens brancos, maioritariamente – oito trabalhavam na redacção de uma publicação caracterizada como satírica, em França, e agora de renome internacional: "Charlie Hebdo". Essas mortes são, e não podem deixar de ser, tão lamentáveis quanto criminosas.

A resposta, porém, foi avassaladora: um pouco por todo o mundo ocidental(izado) – mas pouquíssimo fora dele – surgiram clamores que afirmavam Je suis Charlie. “Eu sou Charlie” - não as vítimas, mas a instituição onde elas se enquadravam, vista como uma espécie de bastião politicamente necessário contra o fundamentalismo; o ataque, esse, visto como tendo ameaçado, mais do que as pessoas, a própria ideia de liberdade de expressão, passível de sucumbir a um qualquer devaneio com pretensas motivações religiosas. Esses clamores diziam – dizem – que “ser Charlie” é apenas solidariedade.

A linguagem é uma coisa chata, às vezes. Ela não faz (só) aquilo que nós fazemos. Quem se afirma Charlie, afirma-se idêntico a Charlie. Ora, é característica da identidade o apagar das diferenças: quem simplesmente se afirma Charlie, faz de Charlie um modelo, um símbolo, um significante que ultrapassa largamente a ideia de solidariedade mas que, ao cooptar para si também o conceito de solidariedade, cria as condições para uma fácil falsa dicotomia. Ou se é Charlie ou não se é solidário.

Importa desmontar o que está por detrás de Charlie. A ideia de base é a da liberdade de imprensa e de expressão (duas realidades diferentes que têm vindo a ser coladas bastante nos últimos dias). Porém, não só parte das práticas editoriais da Charlie Hebdo violam a liberdade de expressão ao usar a publicação como veículo para discurso racista, sexista e xenófobo – mesmo as interpretações mais 'compreensivas' que colocam estes "cartoons" no contexto de Charlie ironizar com a extrema-direita francesa, e não directamente com, por exemplo, as mulheres vítimas de tráfico humano e escravidão sexual por parte do Boko Haram, não chegam para anular este facto – e violam a própria ideia de si mesma enquanto uma cruzada contra tudo e todos ao, em 2009, ter despedido um jornalista por um "cartoon anti-semita". Ah!, anti-semita e com um Sarkozy envolvido, não esquecer o detalhe.

A defesa do papel político da sátira é aqui equívoca: a sátira é uma relação político-discursiva de poder que apenas funciona numa direcção, de baixo para cima. À “sátira” que flui de cima para baixo dá-se geralmente outro nome: "bullying" ou opressão. No contexto francês, a população muçulmana ou de descendência muçulmana constitui justamente uma das camadas populares que está em baixo (por outro lado, os Sarkozy estão lá em cima, mas quando Charlie tocou nesses, o "cartoonista" acabou despedido...). Até mesmo Charlie está agora numa posição particularmente abonada, com milhares de euros de empresas privadas e apoio directo do Estado – Charlie e o devir instrumento publicitário para uma bela performance geopolítica.

A ficção que é "Charlie Hebdo" nada tem que ver com a realidade das práticas editoriais da publicação, e as pessoas que (se) identificam com Charlie estão, em não pequena parte, a pretender projectar um desejo nessa afirmação fusional que fazem.

Há uma vontade de se fazerem Charlie, à força de tanto dizerem que o são já.

Mas há também dois outros problemas.

O primeiro é o do apagamento etnocentrista. Quando eu me digo Charlie, e quando ocupo as ruas e as notícias e o espaço de debate político com isso, estou literalmente a servir-me do meu privilégio racial, social e económico para focar a atenção e as prioridades em mim, em nós – cidadãos brancos e de classe média, com determinadas concepções de “liberdade de expressão”, de “racismo”, de “prioridades políticas”. Pura e simplesmente não é realista sequer imaginar que, de hoje para amanhã, as principais agências noticiosas possam ser destruídas. A “liberdade de expressão” não está desde há uma semana mais (ou menos) ameaçada pelo terrorismo do que há um mês atrás. Por outro lado, as verdadeiras vítimas últimas – a comunidade muçulmana em França, e as minorias étnicas em geral do espaço europeu – estão efectivamente em maior risco desde há uma semana, e não é por medo de fundamentalistas islâmicos, não. E a questão levanta-se: mesmo que fosse totalmente legítimo ser-se Charlie, porque somos tão rápidos a ser Charlie e tão imóveis a ser essas vítimas? Tão rápidos a ser Charlie e tão imóveis a ser as cerca de duas mil vítimas de Boko Haram? Tão rápidos a ser Charlie e tão imóveis a sermos palestinianos?

O segundo problema é o da caça às bruxas. Enquanto estamos ocupados a querer ser Charlie e a lutar por uma suposta liberdade de expressão, os principais governos ocidentais apressam-se a ajudar nessa luta – cortando justamente a liberdade de expressão. Se a nossa preocupação com a liberdade de expressão é mais do que perfunctória, então a ameaça não são “os terroristas”, mas sim as democracias liberais ocidentais com as quais nos identificamos, e que apoiamos. Se “liberdade de expressão” quer dizer de facto a capacidade de usar o discurso para efectuar mudanças no mundo, então o "marketing" político, o excepcionalismo aos direitos humanos, a vigilância estatal desregulada e um sem-fim de outras coisas são muitíssimo mais preocupantes – precisamente nessa lógica de liberdade-enquanto-símbolo – do que os homicídios na redacção de Charlie.

Ir para a rua – física ou "facebookiana" – gritar "Je suis Charlie" é reconfortante: fazemo-nos Charlie, juntamo-nos a algo maior do que nós mesmos, expressamos indignação com o que está mal no (nosso) mundo, preocupamo-nos com valores (nossos) de uma ordem mais elevada, e passamos ao lado de uma série de pequenas-grandes incongruências. Uma experiência... religiosa, digamos.

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