A fantasia arqueológica de Francisco Tropa

TSAE. Tesouros submersos do Antigo Egipto está organizada segundo as coordenadas de um local secreto no fundo do mar. É uma exposição encontrada por Francisco Tropa.

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Francisco Tropa roubou o título desta sua nova exposição a uma outra que viu em Madrid MIGUEL MANSO
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Uma exposição com muitas coisas: objectos, fragmentos de objectos, objectos incompletos, desenhos, imagens, texturas
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Uma exposição com muitas coisas: objectos, fragmentos de objectos, objectos incompletos, desenhos, imagens, texturas
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Uma exposição com muitas coisas: objectos, fragmentos de objectos, objectos incompletos, desenhos, imagens, texturas

É difícil classificar esta nova exposição de Francisco Tropa. E esta vaga afirmação é, contudo, necessária, porque se trata da constatação que todas as narrativas que se produzirem não conseguirão dar conta das subtilezas e aspectos diferentes apresentados.

No seu conjunto pode dizer-se ser uma exposição com muitas coisas: objectos, fragmentos de objectos, objectos incompletos, desenhos, imagens, texturas, muitos deles parecem uma espécie de mirabilia pertencentes a um gabinete de curiosidades desconhecido. Todos contêm uma estranheza e partir da qual comunicam connosco, obras portadoras de um simbolismo que acreditamos ser existente, mas que nos escapa, e com funções desconhecidas. É perceptível tratar-se de uma elaborada alegoria com o objectivo de dizer algo sobre o mundo. A certeza que guia a percepção das pedras, túmulos, caixas, imagens, mapas transformados em esquemas cromáticos, é que está em causa o mundo, as suas imagens e as formas de, permanecendo no mundo, poder transcendê-lo, por isso surgem modelos planetários, cosmologias, que permitem estabelecer ligações entre o interior da Terra e o firmamento, entre o inferno e o paraíso.

A exposição, TSAE. Tesouros submersos do Antigo Egipto, está organizada segundo as coordenadas de um local secreto no fundo do mar, um lugar submerso descoberto por entidades que não reconhecemos, nem são identificadas, e as obras são apresentadas como achados desse lugar incerto, coisas sem tempo ou cronologia, mas cuja acção ainda pode ser sentida. O título da exposição é uma repetição dupla: repete outras exposições de Francisco Tropa e convoca uma exposição de arqueologia que o artista viu em Madrid. “O título”, diz Tropa, “é roubado ou, se se preferir, encontrado. E vem de uma exposição que vi em Madrid e interessou-me a maneira como este título trabalha. Ele antecipa a visão e acciona todas as noções que o sentido comum tem sobre o que é uma exposição, o que foi o Antigo Egipto, o que são tesouros submersos.” Não se trata de um jogo de enganos ou da tentativa de sedução do visitante, mas de usar o capital simbólico e as crenças que os visitantes de exposições possuem relativamente ao que deve ser um tesouro do Antigo Egipto.

Há outro aspecto a realçar que é a proximidade entre a ideia de arqueologia que o título da exposição convoca — a descoberta de tesouros submersos resulta de um processo arqueológico de descoberta e investigação — e uma certa ideia de prática artística. Diz Tropa: “em ambas as situações operamos por camadas. Na arqueologia o processo é de eliminação de camadas até chegar ao fundo, em arte o processo é inverso e fazem-se adições, construções, fazendo-se as coisas crescer.” Trata-se de usar o léxico da arqueologia e das suas exposições de divulgação e usar esses materiais para construir “uma imagem espelhada do fazer da arte. É uma falsa arqueologia, um arqueologia ficcionada, que eu transformo em realidade e, portanto, não se trata de uma réplica falsa de uma outra coisa verdadeira.”

O jogo
A ficção aqui referida pelo artista é relativa ao modo como com as diferentes obras que compõem este seu mundo ficcionado e construído se consegue construir uma espécie de grande narrativa que tudo engloba. Para Tropa trata-se de um jogo com um sentido extra-lúdico, ou seja, o jogo é uma forma intuitiva, sensível e casual de relacionar coisas aparentemente irrelacionáveis. O modelo é o do lançamento de pedras (de que a exposição apresenta exemplos) e como dessa acção surgem novas configurações de elementos, novas imagens, novos sentidos. O ponto central é a conjugação, aparentemente impossível, entre as ideias de arqueologia, de construção, de processo, e a total casualidade introduzida pelo jogo. “O jogo é a grande analogia do fazer da arte: junta e separa.” Ou seja, trata-se de entender a acção artística como tentativa de conjugação de diferentes elementos, formas, matérias, linguagens, tempos, e no fim conseguir ter um todo com sentido. Um jogo que o artista vai fazendo até as coisas — as obras — estarem certas, isto é, até os diferentes elementos, cuja junções poderiam parecer à primeira vista paradoxais, poderem fazer sentido, ou seja, o jogo é uma coisa a posteriori e diz respeito, sobretudo, a uma tentativa de conjugação e conciliação.

Um jogo iniciado pelo artista que funda uma relação entre as diferentes peças e é esta relação, resultante dos movimentos ao acaso do jogo, que constrói esta espécie de texto que a exposição materializa e apresenta: um texto que é uma fantasia, uma alegoria, ou mesmo um sonho. Essencial é perceber, como o artista faz questão em sublinhar, que esta história não é um guião, ela surge posteriormente: “o texto que proponho é posterior à criação das obras e não limita qualquer criação. É só quando tento colar as diferentes coisas é que surge a história que dá unidade à exposição.” Por isso, jogo é um conceito tão importante na prática deste artista, porque “o que eu quero é construir um conjunto de elementos que permitam ser baralhados de muitas maneiras diferentes permitindo-me ver como é que um mesmo objecto pode funcionar em textos e situações totalmente diferentes, ou seja, como é que uma mesma obra funciona bem numa situação, depois noutra, noutra e noutra.”

Fala-se aqui em texto, mas o correcto seria chamar-lhe ficção narrativa. Uma ficção a que não são estranhas as influências das máquinas criadas nos romances do escritor francês Raymond Roussel e as máquina de movimento perpétuo inventadas pelo alemão Paul Scheerbart, uma ficção alegórica e fantástica que é, acima de tudo, assumida como máquina de gerar sentidos. Fantasias narrativas, invenções, figuras fantásticas que não servem para esconder, mas são figuras da verdade, ou seja, não se tratam de delírios mas de uma intensa produção de imagens para dizer a realidade. Pode entender-se que todas as obras apresentadas dentro desta maravilhosa história são dispositivos e mecanismos criados para de um modo eficaz chegar ao mundo e dizê-lo.

Tropa não evita os paradoxos e as ocasionais contradições e os elementos para perceber a enorme alegoria montada pelo artista estão todos presentes: “todas as pistas são dadas.” O interessante não está na descoberta das quebras narrativas que impedem a total coerência desta fantasia arqueológica de Tropa, mas na maneira como se pode, sem resistência, entrar no jogo proposto e, a partir dessa crença nas palavras e objectos propostos pelo artista, descobrir regiões de sentido e de experiência que as obras de arte possibilitam. E, assim, tornar o real, na sua dimensão paradoxal e confusa, inteligível.

 

 

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