Música, Internet e Golden Mist

Conexões globais, ligações locais e música sempre imprevisível é este o lema da surpreendente editora lisboeta Golden Mist.

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Diogo Lima e Gonçalo Salgado Filipe Real Marinheiro

Em Abril do ano passado viajámos até Londres (artigo Underground Sound Of Portugal em Londres, Ípsilon, de 2 de Maio) para apresentar a actividade de uma série de activistas portugueses da música que operam na capital inglesa, como Marco Rodrigues (Photonz, One Eyed Jacks), Inês Coutinho (Violet), Ivo Pacheco (IVVVO), Bruno Deodato (Trikk) ou Luís Dourado (Purple), que entretanto já se mudou para Berlim.

 tarde, em Setembro, cartografamos a actividade de Diogo Correia (Marie Dior) e da sua editora AVNL, que mantém com Manuel Robim (Old Manual) e Tiago Rodrigues (Rap/Rap/Rap). Conheceram-se os três na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, mas hoje estão em lugares muito diferentes: Diogo em Berlim, Manuel em Londres e Tiago em Lisboa.

E agora passamos para a editora lisboeta Golden Mist de Gonçalo Salgado (Lake Haze) e Diogo Lima (DJ Khabal), de malas aviadas para Berlim, que têm apostado em projectos com nomes como Shcuro, Ana3, Jezek & Kurepa ou Onto Hek, para lá dos aludidos Marie Dior, Old Manual e Rap/Rap/Rap.

Conhecem-se todos. A maior parte, inicialmente, através da internet e só depois ao vivo e todos eles criam música de características electrónicas desenvolvidas em estúdios caseiros.

Uns por opção, outros pelas contingências ditadas pela crise económica, têm rumado a Londres e Berlim, embora paradoxalmente o interesse que suscitam tenha também a ver com o facto de serem do Porto ou Lisboa – a esse propósito ler o excelente artigo de Adam Harper para a revista americana The Fader (System Focus: bridging the Lisbon’s underground).

Independentemente dessas características existe qualquer coisa que os une: todos eles fazem música estimulante e imprevisível difícil de situar. Sim, existe o elemento electrónico comum e a inalação de influências do caos da internet (dos videojogos ao intricado mundo comunicacional), mas pouco mais. Dir-se-ia que se existe qualquer coisa que os une é nenhum deles praticar linguagens estabelecidas, como se o seu alimento fossem estilhaços do tecno, do hip-hop ou dos ambientalismos.

Mais do que um idioma análogo existe uma vontade exploratória comum que cada um desenvolve ao seu jeito, tanto incidindo em música mais rítmica ou de atmosferas.

É dessa diversidade que dá conta a editora Golden Mist, uma ideia desenvolvida desde Setembro de 2013 por Gonçalo Salgado a que se haveria de juntar, em 2014, Diogo Lima. “Inicialmente a ideia era dar voz a amigos, gente que fui conhecendo através da internet ou de festas, e que não tinham uma plataforma que os desse a conhecer”, afirma o primeiro.

Até agora efectuaram nove lançamentos de distribuição digital (sete EPs, uma compilação e o álbum Killing de Rap/Rap/Rap), a que se seguirão, este ano, algumas edições em vinil. Há um pouco de tudo no seu catálogo, de abordagens mais inspiradas pelas electrónica de dança, como o excelente EP Street Clamour do projecto Ana3 de João Alves Marrucho, a habitar em Londres, ou o EP Constant de Marie Dior.

Para vislumbrar as propriedades mais cavernosas e oblíquas do tecno há o EP Black Mist de João Ervedosa, ou seja Schuro, e para uma sessão de ambientalismo e microrganismos digitais, o surpreendente Wrong Room de Jezek & Kurepa, ou a inebriante descida à selva urbana que é Tropic Hall de Old Manual, apanhado ininterrupto de respirações, sons e climas.

Para uma recriação muito singular de algumas sonoridades afro-portuguesas, vale a pena ouvir Blastah, isto é Duarte Lima. E depois existe ainda esse mundo à parte que é o projecto Rap/Rap/Rap, fascinante caleidoscópio do mundo fragmentado onde vivemos. “A editora funciona como um catálogo variado de artistas que se movem nas margens, em Lisboa, mas sem que exista um género a predominar”, conclui Diogo Lima.

O Soundcloud, o Bandcamp e o Facebook são as plataformas onde a sua música é difundida, lamentando-se pelo facto de em Portugal não existirem canais de divulgação sólidos. “Quase não há publicações. Falta mediação entre artistas e público. Não há espírito de abertura ao novo. E assim não existe a hipótese de criar uma identidade ou pequenos nichos culturais.”

Essa consistência existe em Londres ou Berlim, não admirando que seja para aí que a maioria se desloque. Em Abril também Gonçalo e Diogo rumarão para a capital alemã. O primeiro termina um mestrado em arquitectura e o segundo trabalha para pagar as despesas, mas ambos sonham viver da música.

“Vamos para lá com o objectivo de expandir a nossa actividade, mas não deixaremos de operar em Lisboa”, explicita Gonçalo, querendo com isso dizer que não prescindirão das noites bimensais Golden Mist que mantém no MusicBox em Lisboa.

Nessas noites prevalecem sonoridades de dança, mas ainda assim a multiplicidade de propostas não é esquecida. “Tentamos que as noites espelhem um pouco da disparidade da editora”, afirma Gonçalo, que este ano irá lançar três discos físicos do seu projecto Lake Haze, em diferentes editoras.

O ano tem tudo para ser excitante, dizem eles. Para isso acontecer será necessário activar as conexões globais, manter as ligações locais e continuar a acreditar em música inesperada.

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