É Dezembro e ainda há andorinhas no céu

As estações do ano já não são o que eram, assim como a tradição, as ideologias políticas, a religião e as relações entre nós. Quase tudo mudou, está em vias de, ou irá mudar num futuro próximo

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Cícero R. C. Omena/ Flickr

É Dezembro e ainda há andorinhas no céu. Talvez estas retardatárias sejam, na verdade, avant-garde, e achem que a migração anual já não se justifique. Ou talvez tenham perdido o norte.

As estações do ano já não são o que eram, assim como a tradição, as ideologias políticas, a religião e as relações entre nós. Quase tudo mudou, está em vias de, ou irá mudar num futuro próximo. Vivemos num mundo em constante turbilhão em que a única constante é a própria mudança. E não é fácil viver assim.

Daí a importância de estarmos presentes nos pequenos rituais diários, como observar a nossa maneira de abrir o pacote de açúcar, só no canto ou a todo o comprimento, e como o dobramos cuidadosamente ou o amarrotamos com prazer, para deixar na borda do pires ou no tampo da mesa, a forma como os cristalinos grãos caem e se afundam no café, a resistência que fazem ao movimento circular da colher e como a espuma fica a rodar depois de acabarmos de mexer.

Ou a forma como lavamos a loiça, a quantidade e a cor do detergente que pomos na esponja, os movimentos circulares com que lavamos os pratos e os enxaguarmos, ou a maneira de os pormos a secar – deixando espaços entre eles - a seguir, no escorredor. Os copos que teimam em escorregar-nos das mãos. O ruído metálico dos talheres por entre a espuma branca.

O acto aparentemente banal de estender a roupa, o cheiro fresco a roupa lavada, o peso da água nas peças de vestuário, a forma como seguramos várias molas numa só mão para evitar ter de ir sempre buscar mais, ou o modo com preferimos que as nossas calças sejam estendidas, do avesso ou não, de cima para baixo ou debaixo para cima. A mecânica do acto, mais do que meramente funcional, pode também ser estética e cheia de significado. Quase poética.

Defendo, mais do que os apertos de mãos vazios, os beijinhos no ar, ou outras saudações e rituais sociais sem substância, a verdade e o profundo significado que as pequenas rotinas quotidianas podem ter na nossa vida. O papel importante que desempenham em nós e no nosso bem-estar.

Não indicam o norte magnético ou qualquer outro, é verdade, nem nos vão, por si só, dar-nos o significado da vida, mas proporcionam-nos pequenos oásis de permanência, de imutabilidade e de refúgio perante a tirania do relógio, a ditadura da mudança e da produtividade e eficiência vigentes.

É Dezembro e ainda há andorinhas no céu.

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