O Fogo e a Água

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Tenho um fascínio pelas coisas que estão lá e não estão. Por isso, há muito tempo que pensava escrever sobre o Reservatório da Patriarcal. O reservatório está lá, os seus arcos e túneis escondidos debaixo dos pés de quem passeia pelo Jardim do Príncipe Real. Mas a Patriarcal, essa, já lá não está.

Ficou o nome, como em tantas outras histórias da cidade — a Patriarcal Queimada. A história é esta: o terramoto de 1755 destruiu a antiga Capela Real, junto de São Julião, sede da Patriarcal. Foi preciso encontrar um novo local para esta, e decidiu-se que seria no Alto da Cotovia, onde hoje é o Príncipe Real.

Logo no ano seguinte ao terramoto iniciou-se a construção do novo edifício e em 1757 rezou-se a primeira missa no local. Mas numa noite de Março de 1769 foi ateado um fogo para destruir papéis comprometedores, e toda a Patriarcal ardeu. A zona passou então a ser conhecida como o Largo da Patriarcal Queimada. O mais curioso é que, mesmo longe do Príncipe Real, a Patriarcal continuará a ser engolida por chamas, como se não conseguisse fugir ao seu destino.

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O reservatório tem 31 pilares de 9 metros de altura, um projecto do engenheiro francês Louis-Charles Mary, construído entre 1860 e 1864

Transferida para o Mosteiro de São Bento da Saúde, arde novamente em Outubro de 1771, mais uma vez por fogo posto que por pouco não destruiu o arquivo da Torre do Tombo, que também ali se encontrava. Nova mudança, desta vez para o Mosteiro de São Vicente de Fora, e novo incêndio, em 1772. Os incêndios foram sempre ateados na sala onde eram guardadas as armações e, descobriu-se depois, tiveram todos o mesmo autor: Alexandre Franco Vicente, armador da Santa Igreja Patriarcal responsável pelas armações que eram bordadas e tinham franjas de ouro, que procurava assim esconder os roubos que ali tinham acontecido. Não teve um fim bonito. Julgado e condenado, foi arrastado preso à cauda de um cavalo, açoitado, e queimado vivo no largo da Cotovia.

As chamas pareciam nunca estar muito longe deste local. E, no entanto, quando o vou visitar é para descobrir o reservatório de água que, durante todo este tempo, assistiu impávido, debaixo da terra, aos estragos que o fogo fazia em cima.

No início do século XIX começou-se na zona da Patriarcal Queimada a construção do Erário Régio, dentro do qual seria integrada a Torre do Tombo. E foi então que, ao escavar-se para criar as fundações, se descobriu a água. Como faltaram as verbas para terminar a construção do Erário, a obra ficou por fazer, e o povo rebaptizou o local como “sítio dos caboucos do Erário Régio”.

Quando a Companhia das Águas o tomou para a construção do reservatório ainda aproveitou os alicerces que se destinavam à Torre do Tombo e a pedra do Erário. Hoje, quem passeia pelo Jardim do Príncipe Real, vê o lago e a fonte no centro (que serviriam para arejar as águas antes de elas entrarem no depósito), mas mal dá pela entrada para o Reservatório da Patriarcal.

Descem-se as escadas, e a humidade que está no interior começa a embaciar lentes dos óculos e das máquinas fotográficas. Entramos para o espaço do reservatório propriamente dito, com os seus 31 pilares de 9 metros de altura, um projecto do engenheiro francês Louis-Charles Mary, construído entre 1860 e 1864 e que foi durante algum tempo o mais importante centro de abastecimento de água à zona baixa da cidade, até ser desactivado na década de 40 do século XX.

Desse espaço central sai um longo corredor, uma galeria de 410 metros, que parece muito mais longa quando a percorremos debaixo de terra, e da qual, por sua vez, saíam outros braços que abasteciam diferentes locais da cidade, privilegiando pontos importantes como a Imprensa Régia, o Colégio dos Nobres, ou a fonte em frente do Palácio do Marquês de Pombal, na Rua do Século. Paramos num desses cruzamentos de braços que seguem em direcções opostas, e, como se estivéssemos numa rua à superfície, encontramos a placa que indica a direcção para a Praça da Alegria. A água descia daqui até ao então Passeio Público, na Avenida da Liberdade, no topo do qual existia uma cascata.

Continuamos a avançar pelo corredor estreito mas bem iluminado. E, de repente, paramos. À nossa esquerda há uma porta pequena. Alguém a abre, e chega-nos a luz do sol. Saímos, quebrando o leve encantamento em que tínhamos mergulhado na penumbra húmida daquela longuíssima galeria, e estamos no jardim de São Pedro de Alcântara, onde os turistas olham com curiosidade para aquelas pessoas que, sem aviso, emergiram das entranhas da terra por uma porta quase tão pequena como a da Alice no País das Maravilhas e com as cabeças cheias de histórias de fogo e de água.     

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