Instantâneos de validade limitada

O fenómeno das selfies e das redes sociais são talvez o melhor exemplo actual desta tendência de documentar tudo o que fazemos, e não deixar espaço para o esquecimento

Foto
Marco Monetti/Flickr

A fotografia é conhecida por capturar os fugidios instantâneos da realidade, como quem tenta apanhar pirilampos com as mãos numa noite tépida de Verão – uma diligência nem sempre fácil. Embora seja possível fazer fotografias de vários minutos e mesmo horas (astrofotografia), o acto de fotografar é muitas vezes associado ao momento decisivo, à fracção de segundo em que tudo se compõe, o fotógrafo, a máquina, a luz - o universo condensado num instante de tempo.

Só que, por vezes, não dispomos de nenhum instrumento de registo, nenhum mecanismo, nenhuma máquina fotográfica ou de filmar, gravador de som, processador de texto ou mesmo o humilde binómio papel-caneta, e o registo fica só guardado na nossa falível memória.

Como partilhar essa memória já que só nós a temos, pelo menos do nosso ponto de vista, e que é desconhecida por todos os outros? E qual o seu real valor? A fotografia está fora de questão pois o evento que criou a memória reside no passado. Restam a palavra escrita ou falada, a pintura e a música e a escultura e o teatro. Em suma, as artes. Mas nem todos nós possuímos esses talentos, quer em qualidade quer em quantidade suficiente de forma a exteriorizarmos fielmente a nossa memória.

A memória fica assim presa em nós, confinada aos limites da nossa pele, como um novelo de imagens, sons, cheiros, e emoções por desenrolar. Transforma-se naquilo que somos, na nossa bagagem pessoal, caminhando connosco pela cadência dos dias. É uma parte da nossa vida num determinado momento, condenado a desaparecer quando deixarmos de existir. Torna-se um instantâneo de validade limitada e não há mal nenhum nisso.

Talvez o acto de ser humano implique essa conquista e essa perda, a descoberta e o esquecimento da nossa visão da realidade, dos poucos momentos de lucidez por entre a loucura da normalidade. A percepção de que não somos nem temos de ser perfeitos e que o nosso fim foi escrito ao mesmo tempo que o nosso princípio.

E talvez sejamos de facto ilhas – como se costuma dizer - agrupadas em arquipélagos, onde nos é permitido explorar a nossa própria ilha e ver, mas não tocar, as ilhas que nos rodeiam antes que voltarmos ao oceano de onde irrompemos. À ausência de luz, de tempo e de memória.

As relativamente recentes conquistas tecnológicas da imagem estática e em movimento assim como a relativamente mais antigas técnicas da pintura, em tela ou cavernas, permitiram-nos desafiar o esquecimento a que estamos naturalmente votados. O fenómeno das selfies e das redes sociais são talvez o melhor exemplo actual desta tendência de documentar tudo o que fazemos, e não deixar espaço para o esquecimento. Só que quanto mais documentamos menos vivemos, e quanto menos vivemos menos memórias e instantâneos criamos e mais vazios ficamos.

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