O movimento da vida, a ligar o desenho e a geometria

Na Galeria Filomena Soares, Desenho, de Helena Almeida, e Escada, de Artur Rosas são duas exposições que se separam. A primeira com o corpo que os traços criam, a segunda com a geometria das formas. E que se aproximam, com as histórias partilhadas pelos artistas.

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Um corpo “pintado” de negro luta com um pedaço de papel vegetal: Helena Almeida
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É instável e estável e imprime uma ideia de movimento. Pode servir para subir ao céu ou provocar uma queda: Artur Rosa
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Enric Vives Rubio
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Enric Vives Rubio
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Entre as duas exposições patentes até 7 de Março na Galeria Filomena Soares existe um laço que transcende a natureza das obras: os (dois) artistas formam um casal: Helena Almeida (Lisboa, 1934) e Artur Rosa (Lisboa, 1926).

Todavia esse facto, por si só, não oferece qualquer orientação ao espectador. As obras estão separadas no espaço, em duas galerias, uma escurecida, a outra banhada pela luz. Ainda assim, aborde-se, com a reserva certa, os contornos deste reencontro. “Já não expúnhamos juntos há vinte anos”, recorda a artista. “Pensámos em voltar a fazê-lo antes, mas o Artur abandonou as artes plásticas para se concentrar na arquitectura e só recentemente, depois da insistência de uma amiga comum, decidimos fazer esta exposição. Foi quase à força [risos]”. A presença de dois tempos revela-se na história das obras. As séries de fotografias de Helena Almeida foram realizadas entre 2012 e 2014, a escultura de Artur Rosa, <i>Escada</i>, data de 1984.

E não é apenas a disjunção temporal que as distingue. “Não há qualquer diálogo entre elas. Somos completamente opostos. Ele é muito geométrico, eu não. Eu trabalho com o meu corpo e o meu corpo é o desenho”. Helena Almeida aponta para a série que tem diante de si: “Estas são as de 2014. Há uma raiva aqui. Uma raiva de não conseguir o que quero e, depois, de me estar nas tintas para tudo. Dou um berro. Às vezes sai-me um trabalho assim. Há até um risco de queda, mas não caí. Equilibrei-me bem.”

É assim que a artista descreve a série mais recente. Mas junte-se-lhe uma descrição alternativa. Um corpo “pintado” de negro luta com um pedaço de papel vegetal. Segura-o entre as pernas, deixa-o deslizar até ao chão. Apanha-o com um pé e suspende-se no ar num movimento drástico e inusitado. Um passo de dança. Assoma a estranheza. O que se vê? Um animal, uma mulher, um corpo animado por impulsos. Desenho, desenhos. Tudo começa com desenho, com o traço, com a mão, antes da fotografia. Numa vitrina, estão esquissos, formas desenhadas sobre papel. Identificam-se alguns dos movimentos, dos gestos, das coreografias que Helena Almeida projecta ou reencena nas imagens fotográficas. “Faço estes desenhos em qualquer bocado de papel. Imagino, visualizo, desenho, desenho até cair, até dizer ‘acabou-se’. Por vezes, considero-os um disparate, mas quando os volto a ver, descubro que foi a melhor coisa que já fiz. É claro que o trabalho passa por muitas fases, tenho que unir os materiais, mas o desenho é directo. E tão fantástico, é um mistério”.

O primeiro a ver
Artur Rosa foi sempre uma testemunha privilegiada deste processo. Assistiu ao momento em que Helena Almeida começou a pintar sobre as fotografias, afastando-se das telas e do óleo. “Sou sempre o primeiro. Vejo os desenhos e depois vejo a Helena. Quando ela se afastou da pintura, comprei uma máquina e comecei a fazer as fotografias. De alguma forma, ela puxou-me lá para dentro”. Esta observação não é gratuita. Nalgumas das obras da exposição Andar, Abraçar, comissariada por Delfim Sardo no ano passado, no BES Arte Finança, viam-se mãos, braços, dorsos que não eram os de Helena Almeida. Pertenciam aos do seu companheiro de vida. “Estive dentro das suas fotografias. Mas habitualmente limito-me dar uma opinião. É a Helena que decide e quando vejo os trabalhos finalizados, quando clico, emociono-me”.

Se Artur Rosa entrou nas fotografias de Helena Almeida, esta foi uma escultura de Artur Rosa. A projecção de slides, que documenta a produção do artista, abre com a imagem de uma escultura de 1961, um peça delicada, mas forte, hirta, de ferro. “Foi o meu primeiro trabalho”, recorda. “Estava a terminar uma obra, o edifício da STET [no Prior Velho] e, num conjunto de vigas metálicas abandonadas, vi formas geométricas que podia transformar numa composição. Pedi que mas guardassem e numa oficina, depois de um trabalho de soldagem, construí ‘Helena’ com chapas de ferro”. Mas a história não se concluí neste baptismo. A escultura seria apresentada numa exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, e mereceu uma recensão elogiosa da autoria do ensaísta e escritor Alfredo Margarido nas páginas de um diário lisboeta. “Não sei precisar o título do jornal, mas lembro-me muito bem do texto. A descrição que ele fazia da escultura era a descrição da própria Helena! E ele nunca tinha falado com ela! Mais tarde, encontrámo-nos todos em Paris e [o Alfredo Margarido] pôde finalmente conhecer a mulher que tinha inspirado a escultura”.

Nos anos seguintes, Artur Rosa continuou a fazer esculturas, ora inspirado pela op art, ora jogando com as possibilidades trazidas pela descoberta da malha logarítmica. Interessava-lhe explorar o movimento no espaço dos triângulos, dos losangos, dos quadrados, das esferas, e a ideia de sequência e de repetição. Realiza peças como Evolução de um losango numa malha logarítmica ou, em 1969, a escultura para a entrada da Fundação Calouste Gulbenkian, onde as faces de um cubo desvelam o movimento de uma esfera. O gosto pelo jogo das formas, das linhas, dos volumes, entre o interior e o exterior, estender-se-ia ao espaço público em 1999, com Escultura para Espaço Urbano (que pode ser vista na Avenida Conde de Valbom, em Lisboa), ao género do auto-retrato e ao design, numa fotografia a que Helena Almeida empresta o seu olhar.

Na Galeria Filomena Soares, contudo, só uma obra ganha existência material: Escada. “É uma peça que vem do trabalho com a malha logarítmica. É instável e estável e imprime uma ideia de movimento. Pode servir para subir ao céu ou provocar uma queda”, comenta Artur Rosa. Na outra galeria, Helena Almeida continua a fitar as fotografias. “Quando exponho, faço um corte. As coisas vêm cá para fora, as pessoas comentam. Acaba um período. Tem de ser. Agora vou iniciar outra coisa”, diz. A ideia de corte não significa propriamente um corte com o passado. “Há coisas que vou buscar aos anos 70, estão sempre cá. Os desenhos com os fios, o papel vegetal, mas sinto sempre que há um recomeço. Por vezes, as pessoas não compreendem, não gostam. Acham que há uma história muito grande por detrás. Não é fácil explicar-lhes que o desenho está no meu corpo, está aqui.” E Helena Almeida aponta para o estômago antes de sair, de braço dado com Artur Rosa.

 

 

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