"Ser árbitro é ser psicólogo e gestor"

Filipa Jales concorda que a resistência física é imprescindível à condição de árbitro, mas defende que, mais do que acompanhar a bola e zelar pelas leis de jogo, um juiz terá que saber "gerir pessoas"

Luís Seara Cardoso
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João Peleteiro
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Teresa Mendes Vitorino
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Filipa Jales afirma que o râguebi nacional teria a beneficiar com mais recursos humanos a diferentes níveis do desporto, não apenas no que se refere a praticantes da modalidade e árbitros, mas também no que concerne a cargos mais técnicos e até administrativos, como os de fisioterapeutas e directores técnicos.

Nesse contexto da carência de recursos humanos, aquela que foi distinguida pela FPR como o Melhor Árbitro do Ano assegura que as mulheres são um potencial por explorar. "Não há razão nenhuma para elas não estarem na arbitragem, desde que estejam fisicamente preparadas para o trabalho", garante. Mas eles não correm mais do que elas? É verdade. "Só que isso compensa-se com linhas de corrida pensadas de acordo com o ritmo das equipas em campo e contorna-se com agilidade mental, para se responder a qualquer mudança de táctica com decisões rápidas".

A questão mais delicada poderá ser a adaptação ao cargo em termos sociais e emocionais. Sociais, porque uma arbitragem empenhada significa que as folgas dos dias úteis são gastas a rever jogos ou leis e que os fins-de-semana "são simplesmente para esquecer". "Falhei tantos momentos importantes da família que eles já me devem ter excomungado", admite Filipa. Em termos emocionais, por sua vez, a função envolve uma série de subtilezas que podem influenciar decisivamente o desempenho: "Ser árbitro é ser psicólogo e ser gestor. Mesmo que ele não saiba nenhuma lei, se souber gerir pessoas dentro do campo já tem meio jogo arbitrado". Isso reflecte-se no uso da intuição para detectar faltas, por exemplo, ou na capacidade de prevenir nos atletas eventuais perdas de autocontrolo.

Os principais aspetos a medir por esse "termómetro emocional" são, ainda assim, os que se revelam intrínsecos ao sexo das equipas em campo. "É totalmente diferente arbitrar um jogo de homens ou um de mulheres e a diferença fundamental é que elas falam muito mais – estão sempre a falar!", declara Filipa, entre risos. "Ouve-se tudo o que elas dizem umas às outras durante o jogo e elas também questionam tudo o que os árbitros lhes dizem. Com um homem, usar a sinalética é suficiente e só se fala quando há discordância por parte do capitão; com as mulheres, vejo-me obrigada a parar o jogo para explicar verbalmente a falta e elas querem saber o porquê do porquê do porquê!". A ex-campeã reconhece que o bate-boca pode dever-se à familiaridade que mantém com atletas que já foram suas parceiras e adversárias, mas acredita que o que está em causa é mera biologia. "Falar e questionar faz parte da essência feminina", argumenta. "Mas diga-se de passagem: com elas só se explica uma vez; com eles explica-se hoje, explica-se amanhã outra vez, repete-se no dia seguinte e por aí adiante".

Mesmo fora do campo, o comportamento de uns e outros difere. As senhoras são mais afectuosas e efusivas, no que a própria árbitra não será excepção. "O momento mais emotivo que tive no râguebi foi quando Portugal ganhou à França no Grand Prix", assume Filipa Jales. "Estava a trabalhar no torneio e, quando a nossa Selecção ganhou, pus-me aos saltos e fui a correr agarrar-me às jogadoras. Não devia ter feito aquilo, ok, mas foi mais forte do que eu".

Já os senhores, são mais contidos e "sempre cavalheiros" – na dose possível. Fora do campo, desfilam nus pelo balneário quando a árbitra passa vistoria aos equipamentos e fazem insinuações quando, devido à avaria de uma fechadura, ela fica trancada na zona de banhos com um observador. "É a ver se me atrapalham", afirma Filipa, divertida com essas memórias. Em campo, por sua vez, "se o árbitro for uma mulher e eles tiverem que praguejar, o palavrão vai sair-lhes na mesma, com a força toda, mas a seguir olham logo para o lado e dizem: 'Desculpe'". É por isso que a árbitra delibera: "Se eu tivesse que aplaudir alguém por esta mudança de mentalidades, era os jogadores. Com as equipas técnicas ainda fui tendo alguns dissabores, mas com os atletas não tenho memória de nenhuma situação desagradável".

Questões sociais e emocionais à parte, a diferença mais gritante é a que existe entre os procedimentos da arbitragem nacional e os da internacional. "Aqui, o árbitro faz tudo", explica Filipa. "Lá fora, alguém trata da parte burocrática, que eu nem vejo; alguém faz os briefings com os managers de equipa; alguém lida com tudo o que se passa fora das quatro linhas. A função do árbitro é única e exclusivamente a de se concentrar no jogo". Libertos de tarefas secundárias, os juízes investem mais tempo na preparação da prova. "E como em Portugal ainda se faz um jogo muito parado, essa preparação fazia-nos falta para ficarmos mais próximos do nível internacional", justifica.

O estilo mais casual do râguebi português não invalida, contudo, que tenha sido em solo pátrio que Filipa registou os seus momentos de maior nervosismo. Após vários anos com receio de arbitrar seniores, tremia "como varas verdes" quando se estreou a esse nível na II Divisão e sentiu quase a mesma ansiedade antes do derby Benfica-Sporting da época passada. A solução foi arrefecer o tal termómetro e usar de racionalidade: "Fiz num quadro a lista dos meus medos todos, para ver o que é que estava na minha mão controlar e o que é que não dependia de mim. Nenhum deles dependia de mim".

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