Delfim Sardo, da arte para a arquitectura para a arte

Ao longo do todo o século XX, arte e arquitectura foram-se cruzando e fundindo, questionando-se mutuamente até à criação de campos híbridos. Em Portugal, Delfim Sardo tem vindo a fazer a ponte entre as duas áreas.

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NUNO FERREIRA SANTOS

Normalmente, recuar dez anos permite aferir a permanência ou inconstância de qualquer coisa. E há dez anos Delfim Sardo estava a entrar, como director, no antigo Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém – hoje Museu Berardo. Em 2004, a primeira exposição que comissariou foi Pés no chão, cabeça no céu, a grande retrospectiva dedicada a Helena Almeida. Depois, houve duas mostras de revisão da Colecção Berardo: Aqui e agora: em torno do minimal na Colecção Berardo e Construir, desconstruir, habitar. Por fim, já em 2005, três individuais importantes: uma dedicada à dupla de arquitectos Aires Mateus, outra à artista plástica brasileira Adriana Varejão e uma última à alemã Sabine Hornig.

Todas estas exposições convocavam diferentes formas de lidar com a espacialidade. Tal como, hoje, uma década volvida, acontece com as duas exposições que o mesmo comissário acaba de organizar e inaugurar.

Em Lisboa, entre a Fundação Carmona e Costa e a Cordoaria Nacional, Objectos Imediatos reúne o mais significativo corpo de obras de José Pedro Croft publicamente apresentado desde a retrospectiva de há 12 anos no Centro Cultural de Belém; no Porto, em Serralves, O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976 revê a acção e as consequências do Serviço Ambulatório de Apoio Local, o programa público liderado pelo arquitecto Nuno Portas que, durante o PREC, visou colmatar as carências de habitação das populações mais desfavorecidas do país. A coexistência das duas no tempo é uma coincidência com poucas afinidades. Mas ilustra o interesse cruzado de Sardo por arte e arquitectura, um interesse claramente formalizado quando, em 2010, este comissário migrou temporariamente dos museus e galerias de arte para o comissariado geral da Trienal de Arquitectura. 

“Interessa-me a maneira como o interesse pelo espaço real foi emergindo ao longo da história do mundo moderno”, diz.

O espaço real, pois: “aquele em que o nosso corpo se move e em que sentimos a imanência da vida” – um espaço que, a partir das primeiras vanguardas, se veria cada vez mais convocado para o interior da “genérica transcendência” da reflexão sobre a espacialidade feita pelas artes plásticas.

“O espaço define a forma de representação que produzimos do mundo. Não só: o espaço é a nossa forma de representação da possibilidade do mundo”, argumenta Delfim Sardo no texto Quando a arte fala arquitectura, escrito a propósito de Construir, desconstruir, habitar.

Nesse texto, Sardo recorda como já em 1926, em viagem pela Rússia, Alfred H. Barr, futuro director do MoMA, em Nova Iorque, se lamentava de terem desaparecido todos os grandes pintores desse país, constatando que os futuristas e mesmo os suprematistas em torno de Malevitch tinham migrado para a arquitectura, o filme, o design e a fotomontagem, “áreas mais activas, mais próximas do ‘real’ e, portanto, mais em sintonia com o seu tempo”.

O Espaço Proun e o Gabinete Para a Arte Abstracta, de Lissitzky, o Monumento à 3ª Internacional, de Tatlin, as reflexões de Picasso e Braque sobre a transcriação da tridimensionalidade do mundo real para a bidimensionalidade da tela… Escreve Sardo: “Poderíamos dizer que a relação entre arte e arquitectura acompanha o século XX desde as primeiras vanguardas, definindo um território híbrido no qual as práticas artísticas e arquitectónicas se combinam.”

O cruzamento de práticas é efectivo. No entanto, Sardo sublinha que “a necessidade de distinguir prática artística de prática arquitectónica é tanto maior quanto mais intenso é o cruzamento entre ambas”.

Herdeiras de diferentes tradições, entre arte e arquitectura há clivagens determinantes: “A arquitectura trabalha sobre a realidade do espaço vivencial, e a arte trabalha sobre os mecanismos de representação de espacialidade”. “Esta diferença, por vezes voluntariamente esquecida por ambas as partes, possui uma potencialidade de equívoco notória”, diz Sardo. Uma potencialidade de equívoco visível em muitas exposições de arquitectura, “em que esta se comporta como a reificação objectual da arte transformada em maneirismo”, e na prática artística, “seduzida pela noção de projecto, agora sem objecto”.

“É importante que, no salto que a arquitectura e as artes dão na direcção dos seus terrenos limítrofes, não percam nunca a consciência clara do seu território e da sua especificidade, sob pena de apostarem num campo que perde a consciência do seu carácter negociado e, portanto, a sua intensidade crítica.”      

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