"Sinto-me mais pessoa. Estava um bocado máquina de fazer música"

Sara Tavares ganhou o primeiro Chuva de Estrelas e o festival da canção. Com o passar dos anos foi conquistando uma carreira dentro e fora de portas. Estas quinta-feira e sexta-feira celebra 20 anos desse percurso no São Luiz, em Lisboa, ao mesmo tempo que se relança, depois de uma longa paragem forçada.

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Sara Tavares dr

Já passaram 20 anos, diz ela. Foi nessa altura que Sara Tavares ganhou a primeiro edição do concurso Chuva de Estrelas, cantando Whitney Houston. Agora, aos 36 anos, celebra duas décadas de carreira, com dois concertos (à data inicial foi adicionada uma extra), estas quinta-feira e sexta-feira, no São Luiz, em Lisboa, onde haverá alguns convidados. No domingo (16h e 18h) apresentará também dois espectáculos especiais para os mais novos no Teatro-estúdio Mário Viegas.

 Serão concertos de celebração, mas também de reinício, porque o seu último álbum já tem cinco anos e desde então os concertos têm rareado por razões de saúde. Agora diz-se pronta para retomar a actividade.

O seu último álbum de originais é de 2009. Seguiu-se uma paragem prolongada forçada por um tumor benigno no cérebro e uma operação. Sente-se pronta para recomeçar?

Sim. Tenho estado a meio gás. Só agora me sinto pronta para retomar a actividade. Queria gravar um novo disco no próximo ano. Estes últimos quatro anos têm sido atípicos. Fiquei doente logo depois de o meu último disco sair. O álbum foi lançado em Abril de 2009 e fiquei doente em Dezembro. Grande susto. Parou tudo. E no final de 2010 recomecei a cantar.

Regressa agora com estes concertos dos 20 anos, que por norma provocam sensações contraditórias. São uma celebração, mas há também uma dimensão de nostalgia. Foi ideia sua ou uma proposta a que não resistiu? 

A minha equipa de trabalho incentivou-me muito a fazer este concerto dos 20 anos. Disseram-me que tinha de celebrar. Mas quando faço anos também não tenho assim grande vontade de os celebrar… [risos]. São os amigos que quase me obrigam a fazê-lo. Mas neste caso fazia sentido, porque tenho andado afastada e é também um pretexto para voltar a tocar em Lisboa. E faço 20 anos de carreira. É uma viagem. Mas ainda falta muita coisa para fazer e viver, até porque tenho uma discografia curta. Só tenho três discos e um DVD ao vivo.

Vai haver alguns convidados. Foram pessoas que a marcaram ao longo dos anos ou existiram outros critérios?

Uma delas, o Lokua Kanza, marcou-me e nunca tinha tido a oportunidade de o convidar para estar comigo num concerto. Foi o meu primeiro produtor. Aprendi muito com ele. Fui gravar a Paris com ele. Admiro-o imenso. É uma referência em termos musicais, como cantor e compositor. É congolês e mostrou-me muita gente, da Miriam Makeba ao Salif Keita, que não conhecia quando tinha 20 anos. Abriu-me mundo. Quero partilhar a nossa amizade que se manteve ao longo dos anos. Estive com ele em Kinshasa, em Julho, porque ele também celebrou 20 anos de carreira e adorei. É uma troca também.

Depois tenho o Luís Caracol, a Aline Frazão e o Dino D’Santiago, que vêm na mesma linha que eu. São pessoas que se aproximaram de mim, dizendo que eu era uma referência. Criámos uma cumplicidade fora de palco. E o Carlão [Pacman], porque fizemos um tema juntos, para a festa do Avante!, há três anos, que não gravámos. Quero cantar esse tema com ele. Ao mesmo tempo o mundo do hip-hop era paralelo ao meu, quando surgi em 1994. Foi um crescimento paralelo. É uma voz partilhada de duas maneiras, porque somos da mesma geração e acabamos por falar, mais ou menos, das mesmas coisas.

Referia que ao longo dos anos gravou pouco. Existe alguma explicação para isso? Necessita de muito tempo?

Sou de passo lento. Sou tímida. E depois procuro muito. O caminho não foi óbvio. Não havia um estilo genérico que eu quisesse. Estive sempre a trabalhar numa fusão que se quer simples, ao nível dos poemas e da música, mas onde as coisas fluíssem. Levei tempo a bolar isso. E não gosto de forçar, não tenho um método, vou andando um pouco ao sabor do vento.

Quando começou, na altura em que venceu o concurso Chuva de Estrelas e nos anos seguintes, estava próxima da música negra americana, seja o gospel ou a soul. Só depois viria a incorporar outras influências. Como é que olha retrospectivamente para essa fase?

Não tinha tempo para pensar, nem para perceber o que se estava a passar. Só tive tempo de agarrar o sonho, porque queria muito cantar. Até então achava que não era possível. Mesmo quando concorri ao Chuva de Estrelas aquilo era um tiro no escuro. Estava a preparar-me para seguir o liceu, ser uma operária, talvez, mas surgiu a oportunidade de cantar e agarrei aquilo. O meu primeiro disco era de gospel porque era o que eu ouvia. Essas são as minhas referências. Era uma jovem africana. E, mesmo quando não tinha essa consciência, as pessoas punham-me nessa prateleira. Cria-se um processo de identificação e dizia para mim própria que aquilo devia ser genético. Identificava-me com facilidade com a Whitney Houston ou Michael Jackson. Chegava-me pouca música negra de outras partes. Era pop ou Motown. Quando a minha avó me dava dinheiro para comprar discos, só adquiria os que estavam em saldos e, nessa altura, eram os das Supremes ou Marvin Gaye. Por isso, fui lá dar direito. Aquilo mexia comigo.

Nestes 20 anos, em Portugal, existiram momentos de exaltação à volta de expressões como a soul ou o R&B, mas ao mesmo tempo a música negra parece que continua a ser uma realidade pouca consolidada, não lhe parece?

Tenho a minha resposta pessoal. Percebi que, para a minha música negra se fortalecer dentro de mim, tinha de ser a música negra da minha realidade, daí a aproximação a Cabo Verde, porque durante anos só tinha acesso à negritude ocidentalizada. Com o tempo acabei por perceber que tinha Cabo Verde nas festas da Buraca ou na casa da minha mãe.

Durante anos não ligava, porque não encarava esse património para trabalhar, mas isso mudou. O que falta é implementar essa auto-estima que ainda não temos. É a música das nossas raízes, podemos misturá-la ou fundi-la. A autenticidade ouve-se e sente-se. Nesse sentido para comprar R&B português ou americano prefiro comprar o americano – embora, claro, existam algumas excepções que confirmam essa regra.

Nessa fase inicial, quando ainda não tinha bem definido o seu percurso, teria gente à volta a tentar orientá-la. A partir de determinada altura emancipou-se. Nessa demanda por encontrar o seu próprio caminho teve de cortar com algumas situações ou pessoas?

Era muito bicho. Isso protegeu-me. Não gostava de me vestir de determinada forma ou de ir para as festas de
socialites. Não falava muito. Quase não comunicava. Boicotava essas oportunidades que surgiam. Fui ao festival da canção porque tive vergonha de dizer à Rosa Lobato Faria que não me identificava com a canção. E ainda bem. Porque às vezes Deus escreve certo por linhas tortas e ter ganho o Chuva de Estrelas e o festival da canção, quando ainda tinha importância, foi interessante em termos profissionais. Era tímida. Gostava da música pela música. Não tinha aquela coisa de aparecer. E às tantas fui-me encolhendo e virei-me apenas para a música: quis aprender a tocar guitarra. Protegi-me com a música.

Há um álbum decisivo no seu trajecto, o Balancê (2005). É um disco de afirmação. O que é que contribuiu para isso?

A primeira vez que fui a Paris gravar com o Lokua Kanza, já tinha ideias de fusão, mas não as consegui concretizar. Mas aprendi a estar em estúdio, a fazer os instrumentais, os arranjos e a operar com os músicos. Esse conhecimento que adquiri foi aplicado depois no
Balancê. E também cresci nas composições, estavam mais homogéneas. E os anos de estrada entre uma coisa e outra também me fizeram crescer. Fui tocando mais guitarra e, quando cheguei a esse disco, já compunha sozinha e as coisas foram ficando mais redondas. Nesse disco fiz o que queria ter feito no anterior, mas a partir de Lisboa. Sentia que tinha de ser a partir daqui para ter aquela sonoridade, para ter portugueses ou angolanos, usando o arco-íris de músicos que temos aqui, e acho que consegui isso de forma simples. E depois era uma sonoridade fresca – naquela altura ninguém estava a fazer música em português, se não fosse fado, pop ou rock. Tudo isso contribuiu para o sucesso.

Às tantas começou a tocar por todo o mundo, mais até do que em Portugal. A sua carreira internacionalizou-se. Como é que foi isso vivido por si inicialmente, tendo em conta que era um investimento, um recomeçar quase do zero?

Estava muito feliz. As coisas estavam a acontecer. As pessoas acolhiam-me. Sentia-me forte musicalmente. Tinha uma boa equipa de trabalho. E não sentia aquela coisa de bicho do início. Assumia tudo de corpo e alma. Tudo aquilo tinha saído das entranhas e estava confortável naquele papel. E continuo a sentir-me assim. E quero continuar nessa linha.

 Diz muito que é reservada. A exposição em palco resulta também numa forma de superação dessa timidez?

O palco é o meu momento
socialite… [risos]. É qualquer coisa que me dá muito prazer em 99% das vezes. Às vezes acordo revirada e custa-me subir ao palco e dar a cara. Mas na maior parte das vezes isso é superado pelo prazer de cantar e de sentir que as pessoas ouvem a música e reagem a ela. Isso faz-me superar a timidez. Na igreja aprendi essa coisa do cantar como um serviço, seja para louvar ou inspirar as pessoas. Então incorporo isso: estou em serviço e desejo contribuir para que as pessoas se sintam o melhor possível. Dou o meu melhor.

Quando vemos um actor, partimos do pressuposto que ele está a representar, mas quando um músico está em palco há dificuldade em aceitar que pode estar também a desempenhar um papel. Como é consigo?

Sinto-me eu própria. Não tenho um léxico tão grande, nem argumentos, para ser outra pessoa. Não tenho esse tipo de imaginação. A música é bastante útil para mim, emocionalmente e psicologicamente. Tem-me ajudado a fazer as pazes com as minhas raízes ou com o facto de não ter sido criada com os meus pais, principalmente depois de ter ido a Cabo Verde muitas vezes. Aprendi a cantar as canções de Cabo Verde, a apaixonar-me por aquilo, porque é bonito e sedutor, para além de melancólico. Então, a música para mim é sempre qualquer coisa que me ajuda a fazer as pazes comigo.

É portuguesa, filha de cabo-verdianos. Quando se tem uma ligação forte com dois países, como no seu caso, existe uma espécie de pressão social para se eleger um deles, como se não fosse possível acumular os dois. Sente isso?

Sim, mas sempre fui portuguesa sendo cabo-verdiana. Mesmo antes de sonhar pôr os pés em Cabo Verde as pessoas perguntavam-me: de onde és? E eu dizia que era de Almada. Mas ficava a pensar. Era como se as pessoas me fizessem sentir que havia algo mais. Comecei a integrar tudo isso. Em Cabo Verde a mesma coisa. As primeiras vezes que lá fui senti-me estrangeira. Só com o tempo me fui integrando. Existiu uma altura em que queria muito ser cabo-verdiana e investi muito no crioulo. Passava muito tempo lá. Mas depois fazia-me falta Lisboa. O Outono. A calçada. A cidade. Faz-me falta a cidade europeia que é Lisboa. E quando estou em África faz-me bem voltar. Não quero escolher. Não tenho de escolher.

Ter passado por uma doença tão delicada, para além de ter tido repercussões na sua vida artística, também deve ter mexido consigo no plano humano.

Sim. Acalmou-me. Sinto-me mais pessoa. Estava um bocado máquina de fazer música. Máquina de ser artista. E ajudou-me a recentrar no que é importante. Na minha essência. Abrandei muito o ritmo da minha vida. Tive tempo para pensar, para respirar, tempo para deixar vir as composições naturalmente.

Parece que estes espectáculos vão funcionar para si como uma espécie de balanço e ao mesmo tempo de recomeço.

Sim. É mais um recomeço. É encerrar estes 20 anos e olhar para a frente. É um vamos embora, mais música nova, se faz favor, que é o que eu pretendo de mim própria.

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