Há cicatrizes que são para mostrar

Nem só do brilho das estrelas vive a fotografia de Bryan Adams. As imagens de Wounded – The Legacy of War, sobre cicatrizes de guerra, são viscerais. Tentam não esconder nada

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Soldado Ricky Fergusson, Londres, 2012 Bryan Adams
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Soldado, Jaco van Gass, Londres, 2011 Bryan Adams
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Soldado Jamie Hull, Londres, 2012 Bryan Adams

Quem olha para o glamour que transborda de Exposed, o imponente álbum em que Bryan Adams reúne uma constelação de famosos capaz de ofuscar só com meia dúzia de páginas viradas, dificilmente imaginaria que as cicatrizes de guerra dariam forma ao segundo grande corpo de trabalho fotográfico do músico canadiano.

Parecem a léguas de distância estes dois universos temáticos. Como parecem muito distantes os momentos que ditaram a sua concretização. O certo é que o nascimento da retrospectiva em álbum fotográfico que dá forma a Exposed (2012) e a publicação de Wounded – The Legacy of War (2013) estão separados por um ano apenas (ambos com a chancela da Steidl, uma das mais importantes editoras de livros de fotografia do mundo). E quando as imagens de Exposed circulavam em exposições há alguns meses, Bryan Adams decidiu acrescentar a essa itinerância uma nova secção com as imagens de Wounded. É uma decisão que confirma uma postura despretensiosa e que pode ter dois significados: a tentativa (através de um tema mais “sério”) de libertar o seu trabalho do selo catalogador da celebridade que facilmente fotografa outras celebridades (“só” porque está no meio delas); o entendimento do suporte fotográfico como um veículo provocador e capaz de criar reacção através do confronto de universos aparentemente tão distantes. Quer tenha um ou outro significado (os dois, ou nenhum deles), parece certo que Bryan Adams nos quer dizer que quer sejam rostos de famosos ou corpos de soldados anónimos, o seu objectivo principal é fotografar pessoas, em ambos os casos talvez muito mais na sua simplicidade do que na sua complexidade.

“Pessoas são pessoas”, diz Bryan ao ípsilon, contrariando quem queira ver estes trabalhos nos antípodas e mostrando que por mais estelares que sejam os famosos, as suas imagens não são estanques, nem tão pouco blindadas à contaminação. É por isso também que Exposed (“expostos”) é um título que assenta na perfeição tanto a um como a outro corpo de trabalho, como se o fotógrafo nos lembrasse que quem parece permanentemente exposto afinal não se revela assim tanto, e quem precisa de ser lembrado afinal não tem tido assim tanta atenção. Como um isco num anzol, a fama de uns servirá para nos lembrarmos de que outros - soldados com marcas de guerra que os acompanharão para toda a vida - existem.

O desafio para começar a fotografar soldados britânicos feridos nas guerras do Afeganistão e do Iraque foi lançado há cinco anos pela jornalista do canal de televisão ITN Caroline Froggatt, que entrevistou todos os militares captados por Bryan Adams (o resultado dessas conversas está no livro). A realidade devastadora que fica depois dos conflitos e o esquecimento a que são votados muitos veteranos feridos motivaram o músico canadiano a aceitar a proposta de Froggatt. As imagens que saíram dessas sessões no seu estúdio londrino são explícitas e não se perdem em rodeios. A lente de Bryan apontou às cicatrizes, às mutilações, às próteses e às queimaduras. Daí resultaram fotografias impressivas que têm a virtude de construir uma aura de dignidade, uma identidade renovada a quem se predispôs a revelar-se perante a câmara. “Quis que as fotografias mostrassem de uma forma honesta o que se passou. Não queria que ficassem embelezadas ou que parecessem manipuladas. Queria que estas fotografias fossem apenas reais, aquilo que verdadeiramente são”, disse o fotógrafo numa entrevista recente a propósito de Wounded.

Apesar de haver algum humor em muitas imagens, Bryan Adams confessa que nem sempre foi fácil chegar a um ambiente de descontracção e intimidade que permitisse captar as fotografias que queria. Muitos destes soldados, conta, nunca tinham tido ninguém a olhar para as suas marcas desta maneira. Outros nunca tinham exibido as suas cicatrizes publicamente, uma coragem a que Adams presta tributo evitando qualquer subterfúgio para mostrar o que quer mostrar.

Consciente do poder destas imagens (e também das suas limitações, já que as considera um “vislumbre” dos horrores da guerra), o músico não se tem perdido em grandes considerações acerca da sua experiência ao criá-las preferindo lembrar que antes do nosso impacto para com elas está o impacto para com quem está nelas. Neste exercício de olhar, que pode ter algo de catártico, a memória é sempre o que mais importa. Bryan: “Para estes soldados e para as suas famílias, estas fotografias são uma lembrança dos seus dias mais negros – uma lembrança também de como as suas vidas foram alteradas por causa destes ferimentos”.

Em Wounded, através de uma memória pessoal, Bryan tenta criar uma memória colectiva. Na véspera do Remembrance Day do ano passado, assinalado na Commonwealth a cada 11 de Novembro, dia em que foi lançado o livro, o fotógrafo escreveu: “Quando a poeira assentar nas planícies do Afeganistão e nos desertos do Iraque, quando a gritaria e a propaganda dos governos e dos políticos se tornar um eco distante, o que permanecerá serão as feridas. Será esse, verdadeiramente, o nosso legado da guerra.”

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