"A Casa da Música tem a reputação de fazer uma programação muito aventureira"

Baldur Brönnimann, o novo maestro-titular da Orquestra Sinfónica do Porto, entre elogios à Casa da Música e aos seus músicos, diz querer fazer a orquestra refinar o seu trabalho e alcançar um patamar superior àquele que já atingiu.

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O maestro já que tem vindo a dirigir regularmente a formação desde 2007 Nelson Garrido

É só em Janeiro que Baldur Brönnimann assume oficialmente o lugar de maestro-titular da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, sucedendo no cargo a Christoph König, e iniciando uma parceria, inédita no Porto, com o maestro austríaco Leopold Hager. Mas, no sábado, o maestro suíço esteve já de novo à frente da orquestra no Auditório Nacional de Madrid, a dirigir um programa com a 5ª. Sinfonia de Tchaikovski e a peça de Emmanuel Nunes, Ruf. O PÚBLICO falou com Baldur Brönnimann no final do segundo ensaio de preparação do concerto para a capital espanhola.

Por que foram escolhidos estes dois compositores para o concerto de Madrid?

Porque, no caso do Emmanuel Nunes, é muito importante que a orquestra, quando vai lá fora, apresente também as grandes obras portuguesas. A grande música não é só aquela que vem da Alemanha ou de França. Em Portugal há também compositores importantes. Assim, do mesmo modo que uma orquestra finlandesa toca normalmente Sibelius, ou uma inglesa leva Britten, nós vamos com Emmanuel Nunes, que é tão importante como aqueles, para apresentar a cultura portuguesa. E há também uma certa ligação de Nunes com Tchaikovski. Inicialmente, na Alemanha, pensava-se que a música de Tchaikovski não era muito forte, formalmente. Com a 5ª. Sinfonia, ele tentou unificar o uso do mesmo tema em todos os movimentos, para o tornar mais coerente. Essa mesma ideia estrutural existe Ruf.

Conhece o Orquestra do Porto desde 2007. O que é que o levou a aceitar, agora, o desafio de assumir a sua direcção musical?

É verdade que a conheço. Tenho vindo a trabalhar com a Orquestra quase todos os anos, e temos feitos um reportório muito distinto: contemporâneo, Beethoven, Stravinski, todo o género de música. Gosto muito de trabalhar com eles. Por exemplo, este programa [para Madrid], que é muito difícil, montámo-lo em dois dias. Mas há aqui uma atitude de querer fazer coisas, e um grande potencial. Isso, para mim, é muito importante. Também me agrada que a Orquestra tenha uma estética muito aberta. É como esta sala [Suggia], e a própria imagem da Casa da Música…

 Como tem visto a evolução da orquestra até agora?

A orquestra progrediu muito, e o seu nível aumentou. Está habituada a tocar uma grande variedade de reportórios. São muito mais rápidos. A cada ano em que eu vinha cá, encontrava-a melhor. Quero que esse caminho continue, e que atinjamos mais um patamar, porque a orquestra, com a sua atitude e com a base que tem, está a viver um bom momento, e está no bom caminho.

Quando a direcção da Casa da Música o apresentou como futuro maestro titular, disse que iria abrir um novo ciclo. O que pretende fazer?

Há muitas coisas para fazer. Primeiro, do que precisamos é de um projecto artístico muito claro. É como uma equipa de futebol – como o FC Porto –; tem músicos excelentes, e agora só necessitamos de um plano, de uma estratégia, que lhe permita alcançar um nível mais elevado. Isso passa pela escolha do reportório, pelos ensaios e por outros aspectos: como se planeia, como se trabalha, em grupos pequenos… Creio que a Orquestra também quer isso. Há que programar nesse sentido.

Quais vão ser as prioridades da programação?

Há uma combinação de diferentes aspectos. Há obras que são importantes para a orquestra, para ela trabalhar; há obras que são importantes para o público. A Casa da Música tem a reputação de fazer uma programação muito aventureira, que vai um pouco com a estética da sala. E que fez com que ela se tivesse tornado muito conhecida internacionalmente. No ano passado, fomos distinguidos pela revista inglesa Gramophone na lista dos discos do ano, pelo CD com a gravação de obras de Pascal Dusapin.

As pessoas, internacionalmente, reconhecem o que se faz aqui. Isso deve-se também, em parte, ao facto de haver uma Orquestra Sinfónica, a Orquestra Barroca, o Coro, o Remix. Nesse sentido, há uma ideia muito clara. Mas há sempre outros programas, que temos que fazer, para que a orquestra possa trabalhar. Como agora, por exemplo, com a peça de Emmanuel Nunes, que já tocámos há um par de anos, e também a sinfonia de Tchaikovski, que tocámos juntos há alguns meses. Ao retomar estas peças, podemos refinar a sua interpretação, e as pessoas ficam a conhecê-la muito melhor se a puderem escutar de uma forma detalhada. Creio que isso é o que falta à orquestra: é trabalhar muito, muito, o detalhe, de uma forma cada vez mais refinada, assim quase como um quarteto de cordas.

Referiu-se já duas vezes à arquitectura da Casa. De que modo ela é um desafio para a programação?

Isto é como um museu, como o Guggenheim de Bilbao, por exemplo, que tem uma estética que enforma a própria experiência das pessoas que o visitam. Aqui, isso também acontece. A Suggia é uma sala nova, com uma estética muito particular…

… e não é habitual haver salas de concertos com luz natural.

Isso é muito raro, de facto. Gosto muito de ver a música ser apresentada assim, numa sala que, em algumas circunstâncias, quase não precisa de ser iluminada. É que, às vezes, a música clássica tem um pouco o estigma de ser de difícil acesso Mas esta é uma sala aberta, e muito democrática. Facilita o caminho para apreciar a música. Porque o que nós fazemos não tem nada de fechado.

Tem uma carreira muito marcada pela direcção de programas e géneros muito diferenciados, da clássica à vanguarda, do teatro à ópera… O Porto é um bom sítio para continuar esse percurso?

Eu vivo em Madrid, onde trabalha a minha mulher, que é argentina. Aí sinto-me muito bem e em casa. E, agora, passo a ter também uma segunda casa aqui no Porto. Quero conhecer a cidade, as gentes, a cultura de onde trabalhamos. É importante falar com as pessoas – é por isso que estou também a estudar Português. Acredito que temos que estabelecer uma relação mais próxima com os lugares onde tocamos. Na Colômbia, isso foi muito importante. É um país muito diferente, e para eu me inteirar de como iam as coisas, procurava o contacto com as gentes da terra.

Que balanço faz dessa experiência na Orquestra de Bogotá?

Foi muito interessante, porque se trata de uma orquestra muito jovem, e é um país onde 30% da população vive abaixo do limiar da pobreza. E nós, músicos, também temos uma responsabilidade social. Fizemos muitos projectos com jovens, tocámos para muitas pessoas que nunca tinham ouvido uma orquestra. Mas também fizemos grandes ciclos, com grandes solistas, a todos os níveis.

Acredita que a música tem uma função social? Em Portugal, como sabe, vivemos uma grave crise económica, com marcantes reflexos socias. Neste quadro, como vê a responsabilidade de uma orquestra e de uma Casa da Música?

Também em Espanha se vive uma crise muito forte, e eu vejo o que se passa…  Eu tenho muito respeito pela gente que ergueu esta casa. E a cidade do Porto tem sabido mantê-la e fazer coisas com uma intenção, um sentido de aventura, mas criando algo, mesmo no meio da pior crise. É esse o espírito que me interessa. Aqui vê-se que as pessoas querem fazer coisas.

Falou do Emmanuel Nunes, que é o compositor português mais conhecido na Europa. Que outros compositores lhe interessam?

Há o Fernando Lopes-Graça, o Joly Braga Santos, o António Pinho Vargas… Aqueles são compositores históricos, também interessantes politicamente. E o que me interessa também muito, para além dos históricos, são os compositores jovens. Portugal não tem uma tradição musical como a Alemanha ou outros países, por isso, tem a possibilidade de criar a sua tradição e, aí, os jovens compositores são muito importantes. E temos aqui uma plataforma para essa criação contemporânea. Na Colômbia, a situação é um pouco similar, neste aspecto. Havia uma parte de compositores históricos, mas o interessante era conhecer os novos e tocar as suas obras para que as pessoas criem uma linguagem musical que lhes permita identificar-se com a música do seu país.

Na sua agenda internacional para os próximos meses, está a direcção de uma ópera, Alice no País das Maravilhas, com música de Unsuk Chin, a compositora coreana este ano residente na Casa da Música. A ópera interessa-lhe especialmente?

A ópera é um género que me interessa muito. Mas, claro, o nosso tempo é limitado. Uma ópera implica sempre seis semanas ou dois meses de trabalho. Costumo fazer uma ou duas óperas por ano, mas não mais – seria um calendário impossível, além de que… a minha mulher divorciar-se-ia (risos).

E já trabalhou também com os La Fura dels Baus, em Le Grand Macabre, de Ligeti (2009)…

Sim. Conheço-os muito bem. A mim interessam-me tanto as estéticas novas como os reportórios mais estabelecidos. Hoje, se ouvimos Beethoven, Berlioz, Mozart, Tchaikovski, os grandes clássicos, ouvimo-los com o nosso ouvido, com a nossa experiência de vida. Gosto muito da gente que tem pontos de vista actuais, e isso acontece com os La Fura dels Baus. Eles vêm do teatro, e têm o sentido do circo. Fizemos Le Gran Macabre em Londres e em Buenos Aires. É muito divertido trabalhar com eles – mesmo se faz mal ao fígado (risos).

O seu primeiro concerto oficial à frente da Orquestra Sinfónica do Porto, a 16 de Janeiro, vai ter como solista convidado Pedro Burmester. Conhece-o, e ao papel que ele desempenhou no projecto da Casa da Música?

Conheço o nome, mas não o conheço pessoalmente. Para mim, é muito importante trabalhar com os grandes artistas portugueses, porque há aqui muito talento, há uma história que quero aprender conhecendo as pessoas e estabelecendo relações artísticas com quem aqui vem. E tenho muita vontade de trabalhar com o Pedro Burmester, e mais ainda se é para fazer os cinco concertos de Beethoven, que é um projecto muito bom.

Vai trabalhar com Leopold Hager. É a primeira vez que se vai lançar, na Casa da Música, uma parceria deste tipo, e, quando anunciou os dois nomes, o director artístico, António Jorge Pacheco, disse que ambos fariam “a combinação perfeita”.

Também não nos conhecemos. Vamo-nos conhecer agora em Janeiro; vamos falar sobre a orquestra, sobre o que falta e sobre o que vamos fazer. O Leopold, que é muito mais velho que eu, faz muito reportório clássico, e vem de uma escola distinta da minha. Acho que foi bem pensado para a Orquestra, porque ela é relativamente jovem. Creio que o Leopold e eu podemos completar-nos em diferentes aspectos, e acrescentar diferentes ingredientes à “sopa”.

O que é que a música pode trazer à sociedade actual, nestes tempos de crise, de incerteza e de pessimismo em que vivemos?

Em Espanha, há uma obra social que desenvolve acções para gente em risco de pobreza. Gravou um vídeo em que entrevista uma família com parcos recursos e onde se mostra que a mulher deles vai uma vez por semana ao teatro – a associação que organiza o programa faz animação teatral no bairro. Ela diz, na entrevista: “Quando vou ao teatro, esqueço os momentos difíceis que passo em casa”. Mas di-lo no melhor sentido, pois fala de uma recarga de energia. Acredito que, muitas vezes, é em tempos de crise que se compõe a melhor música, e é quando as pessoas mais necessitam da música. Não é aquele gesto mecânico de ir ao cinema, ao teatro ou a um concerto. É algo mais; é uma necessidade um pouco espiritual, especialmente nestes tempos de crise.

Todo o mundo fala de economia, mas o mais grave da crise é a falta de orientação. Não sabemos por que há crise, não sabemos por que é que as coisas mudaram, repentinamente. Não temos, nas nossas mãos, ferramentas para a enfrentar. E a música pode dar-nos essas ferramentas, a possibilidade de imaginar outra realidade. A música cria essa coisa única: quando alguém toca e alguém escuta, todos são iguais, todos têm o seu valor, e isso é muito importante. Cria-se essa força espiritual.

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